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  • Claus Corbett

Quanto tempo dura?

Claus A. Corbett

ilustração de Mariana Lio



Quanto tempo dura um filme? Um livro? Um jogo? Quanto tempo gastamos com os textos que amamos — e com aqueles que apenas passam por nossa vida? A resposta mais simples seria dizer que duram o tempo que gastamos com eles, que interagimos com eles. Mas aí cabem, então, algumas outras perguntas, sendo a mais importante “gastamos com esses textos apenas o tempo em que interagimos diretamente com eles?”

E a resposta, eu diria, é óbvia: não.

Já pelo investimento emocional, o texto do qual mais se gosta vai ter mais tempo em sua mente, mesmo após apenas uma visualização; e, convenhamos, você vai provavelmente interagir com ele mais de uma vez. Mas, ao mesmo tempo, vai voltar ao seu conteúdo várias vezes sem ao menos chegar perto de sua forma concreta no mundo. Esse tipo de engajamento surge naturalmente quando há interesse, mas há também estratégias de criação que favorecem esse tipo de atitude.

… para se manter relevante para nossa geração hiperconectada, estar presente em suas vidas e mentes, precisamos de conteúdo líquido, adaptável, que possa ser distribuído em todas as plataformas disponíveis. Diferentes níveis de profundidade na história para oferecer diferentes níveis de envolvimento para cada usuário, permitindo que eles entrem o quanto quiserem na toca do coelho, e uma mensagem coesa através de todas as obras para que cada peça melhore a história e contribua para a conversa constantemente.¹

A citação acima se refere a uma estratégia que não é novidade, mas está se aprimorando e se tornando cada vez mais importante: a narrativa transmídia. Essa estratégia, que consolida diferentes espaços narrativos em uma única franquia ou história, é um dos alicerces, por exemplo, do Universo Cinematográfico da Marvel (MCU, como é usualmente chamado), um fenômeno narrativo de proporções globais tanto em seu alcance quanto em sua capacidade de gerar e movimentar renda.

Não só os diversos filmes se interconectam, mas há também séries de streaming que seguem a narrativa e — não podemos deixar de lembrar — décadas de histórias dos quadrinhos que são reaproveitadas, ressignificadas e (de certa forma) recriadas. Todos esses textos dialogam e criam uma identidade maior, uma história maior.

Justamente por revisitar todo um arcabouço narrativo presente no(s) universo(s) dos quadrinhos, o MCU também gera engajamento fora de suas produções, por gerar indiretamente conteúdo através de seus fãs — posts em mídias sociais, vídeos de análise no YouTube, teorias compartilhadas e muito mais. Nós, fãs, usamos também nosso tempo para construir possíveis narrativas em cima do que virá por já sabermos parcialmente o que veio em outras vidas desses mesmos personagens.

Pintura abstrata que lembra tinta de diferentes cores se dissolvendo em água.
ilustração de Mariana Lio

Nas palavras de Alejandro Cardona, as narrativas transmídias são “mitologia para nossas vidas cotidianas” e “parecem viver nesse meio do caminho perfeito entre a inovação e a familiaridade”.² Isso quer dizer que também são reinventadas por nós em nossas leituras e interpretações, ao mesmo tempo que se colocam como narrativas atemporais. Pensando no texto escrito como mais uma manifestação do Texto, entidade quase sobrenatural e de diversas formas, empresto as palavras de Paula Cruciol para pensarmos essa experiência de apreciação: “A escrita é convergente, junta vários elementos imaginários e os transforma em elementos visuais: letras e palavras. A leitura, por outro lado, parte desses elementos visuais específicos e abre as portas para um mundo de imaginação, criação e liberdade”.³

Uma das estratégias para manter, então, as narrativas presentes em nossas vidas é oferecer cada vez mais elementos imaginários para a diversão e a divergência durante a leitura. Outra, no entanto, é ocultá-los, seja por dificultar o acesso a eles, seja por simplesmente não inclui-los.

Já mencionei em edição anterior como jogos constroem narrativas através da experiência direta,⁴ mas isso não é tudo nesses casos. Aproveitando o mesmo exemplo que usei no artigo anterior, gostaria de apresentar uma similaridade entre o jogo Dark Souls e o escritor estadunidense Ernest Hemingway, grande expositor da Teoria do Iceberg. Essa teoria afirma que aquilo que se mostra em um texto é apenas a oitava parte, aquilo que está “acima da água”, enquanto as emoções, pensamentos, interpretações e compreensões sobre a obra estão escondidos nas profundezas. Segundo Ma e Zhao, “O princípio do iceberg também é chamado de Princípio da Omissão e, por isso, a omissão talvez seja a habilidade de escrita mais importante para atingir os seus padrões”.⁵ Isso é levado ao extremo na famosa história de seis palavras que muitos acreditam ter sido obra de Hemingway: “À venda, sapatos de bebê, nunca usados”. Independente de sua autoria e originalidade,⁶ esta curta história representa como significados podem ser ocultos através de um minimalismo de elementos visíveis e ainda assim suscitar reações profundas em seus leitores.

Apesar de jogos oferecerem muito mais elementos visíveis (texto escrito, falas, mecânicas, elementos visuais, trilha sonora, efeitos sonoros…), há ainda a possibilidade de omissão e isso é muito bem explorado em Dark Souls, onde “cada zona é uma história de seis palavras e essas zonas são preenchidas com muitas histórias menores, todas colocadas lá para que o jogador as note ou não”.⁷

Realmente, nem tudo no jogo será encontrado por todos os jogadores em uma primeira experiência — ou mesmo após várias — sem ajuda da comunidade. O sistema de mensagens do jogo ajuda nesse sentido, já que outras pessoas podem deixar informações disponíveis para o jogador, mas elas só aparecem se os dois estiverem jogando ao mesmo tempo e nos mesmos sistemas e servidores do jogo.

Um exemplo disso é a área The Great Hollow: sua entrada não só fica em uma área completamente fora do caminho normal para se continuar no jogo, mas também é escondida por duas paredes falsas, que só desaparecem caso o jogador as ataque. Essa área traz uma quantidade boa de conteúdo no formato de itens, inimigos e histórias secundárias que podem passar totalmente despercebidas.

Hidetaka Miyazaki, o idealizador do jogo, se inspirou em suas próprias experiências enquanto leitor para (re)criar um senso de incerteza, de mistério, de diversão. Em entrevista dada ao The Guardian, ele conta que não tinha dinheiro para comprar mangás e livros quando era jovem, então tinha que se conformar com o que encontrava na biblioteca próxima à sua casa e muitas vezes acabava lendo algum livro em inglês que estava além de sua capacidade de entendimento. Segundo ele, se divertia muito com essas histórias: “Era uma experiência de leitura rica, mesmo quando eu não estava lendo”.⁸

Então, o que vejo de comum no MCU, em Ernest Hemingway e em Dark Souls? Nos três casos, a experiência do público se estende além do momento de contato com a obra. Além de tantos estudos e comentários feitos sobre as obras, há também o engajamento contínuo daqueles que apenas as consideram entretenimento. O tempo de permanência dessas obras vai além das sessões de exposição a elas, permitindo que criemos a partir delas, dentro delas, com elas.

Pensando nas obras mais contemporâneas, é possível com uma pesquisa rápida encontrar diversos artigos e vídeos falando sobre as histórias por detrás do MCU ou de Dark Souls, teorizando sobre o que vem ou o que aconteceu, explorando os universos aos quais as obras nos levam.

Seja através dos elementos que mostramos em todos os lugares possíveis, seja através dos elementos que escondemos de todos exceto os mais interessados caçadores de informações, podemos converter o que criamos em algo além do que podemos criar sozinhos, podemos convidar nosso público a criar conosco, a devotar o seu tempo a algo além de passivamente aproveitar o que colocamos no mundo. E se isso não é uma forma de existir além do seu tempo, fora do tempo, não sei dizer o que seria.



¹ FCB Global. Cinderella 2.0: Transmedia Storytelling. FCB Global, YouTube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CP-zOCl5md0. Acesso em: 30 mar. 2021. Tradução minha.

² Cardona, Alejandro. Transmedia Storytelling in the Marvel Cinematic Universe. Alejando Cardona, YouTube, jul. 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=DLHi-Fb3E6E. Acesso em: 30 mar. 2021. Tradução minha.

³ Cruciol, Paula. Leio, Logo Escrevo. Alcateia, v. 1 — Criatividade, pp. 10-14, abr. 2020. p. 13. Disponível em: https://revistaalcateia.wixsite.com/alcateia/post/revistaalcateia-1-18. Acesso em: 30 mar. 2021.

⁴ Corbett, Claus Augustus. Apenas Pixels em uma Tela? Alcateia, v. 3 — Meios e Registros: as formas do texto, pp. 21-29, ago. 2020. Disponível em: https://revistaalcateia.wixsite.com/alcateia/post/revistaalcateia-3. Acesso em: 30 mar. 2021.

⁵ Ma Daoshan & Zhang Shuo. A Discourse Study of the Iceberg Principle in A Farewell to Arms. Studies in Literature and Language, v. 8, n. 1, pp. 80-84, 2014. p. 80. Disponível em: http://flr-journal.org/index.php/sll/article/view/j.sll.1923156320140801.3918/5591. Acesso em: 30 mar. 2021. Tradução minha.

⁶ Jones, Josh. The (Urban) Legend of Ernest Hemingway's Six-Word Story: "For sale, Baby shoes, Never worn". Open Culture, mar. 2015. Disponível em: https://www.openculture.com/2015/03/the-urban-legend-of-ernest-hemingways-six-word-story.html. Acesso em: 30 mar. 2021. Tradução minha.

⁷ Jump Crouch. How Dark Souls Tells a Story | NOSHOW. YouTube, nov. 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=J--rNbf-UMc. Acesso em: 30 mar. 2021. Tradução minha.

⁸ Parkin, Simon. Bloodbordne creator Hidetaka Miyazaki: 'I didn't have a dream. I wasn't ambitious'. The Guardian, mar. 2015. Disponível em: https://www.theguardian.com/technology/2015/mar/31/bloodborne-dark-souls-creator-hidetaka-miyazaki-interview. Acesso em: 30 mar. 2021. Tradução e grifo meus.



Texto publicado na edição 7 — tempo da revista Alcateia.

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