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Claus Corbett

Apenas pixels em uma tela?

Claus A. Corbett



Uma história não é um produto fechado, pronto para consumo e sempre com as mesmas qualidades, com o mesmo aproveitamento.

Se leio um conto no momento exato em que a temática se sobrepõe às minhas experiências atuais, ele me parecerá melhor, mais profundo do que se eu o tivesse lido anos antes, por exemplo. A música certa pode tornar uma cena em um filme ainda mais poderosa ou mesmo substituir totalmente o diálogo - mesmo uma música sem letra alguma.

E, assim como qualquer outro texto, um jogo pode ser interpretado de diversas formas. Para exemplificar, o trecho abaixo representa minha interpretação dos primeiros minutos de uma playthrough de Dark Souls. As escolhas que fiz na criação do personagem e minhas expectativas antes de começar a jogar refletem parte do que experienciei, assim como estar aberto ao que o cenário e tantas outras coisas tentam me dizer. Ao jogar, eu crio um texto através da minha interpretação do jogo - e posso, então, torná-lo uma rica narrativa.

Acordo em uma cela de pedra fria. Minhas roupas me dizem algo sobre meu passado, mas não me lembro realmente de quem sou. O som de uma grade se abrindo me faz erguer meu rosto cadavérico e vejo um cavaleiro em armadura brilhante cercado pela luz do sol. Ele joga algo próximo aos meus pés: a chave da minha cela.

Ainda tenho sanidade suficiente para entender o que isso significa e começo minha tentativa de escapar. Saio para um corredor estreito com outras pessoas com corpos tão maltratados quanto o meu e, à minha direita, grades grossas me permitem ver um grande demônio andando em um ambiente fechado, seus pesados passos soando ainda mais alto nesse ambiente silencioso.

Tento interagir com os outros, mas eles parecem ter perdido aquilo que os fazia humanos, que os tornava conscientes. Será que o mesmo ocorrerá comigo?

Finalmente, chego a uma escada de metal enferrujado e subo para encontrar um pequeno pátio com uma fogueira no centro e alguns degraus que levam para uma porta grande o suficiente para alguém muito maior do que eu passar. Sento-me à beira da fogueira e uma névoa alaranjada me envolve e conforta, o calor do fogo aquecendo meus ossos cansados.

Me sinto mais consciente do que um momento atrás.

Decido que preciso seguir e com dificuldade abro as pesadas portas de pedra. Entro em um espaço com paredes altas e chão de pedra fria. Dou alguns passos e um monstro enorme pula do telhado.

O chão racha sob seus pés quando ele cai. Sinto o peso de sua força. Preciso fugir. A porta atrás de mim se fecha. Tento atacá-lo. Ele é forte demais. Tento fugir de sua fúria. Seu grande martelo desce sobre mim. Tento me esquiv-

Uma névoa alaranjada me envolve e conforta, o calor do fogo aquecendo meus ossos cansados. Me sinto preparado mais uma vez. Com dificuldade, abro as pesadas portas de pedra e logo um demônio cai à minha frente com um grande estrondo. Corro ao redor dele e vejo uma pequena porta. Ela é grande o suficiente para mim. Mas não para a monstruosidade que me persegue. Escapo por ela. Grades metálicas descem atrás de mim com um raspar estridente.

Sigo encontrando partes do meu passado pelos corredores dessa estranha prisão. Um escudo, uma adaga… chego finalmente ao segundo andar e, através das grades retorcidas de uma cela, vejo o cavaleiro que me salvou caído sobre uma pilha de pedras. A luz do sol ainda repousa de sua forma, mas agora vinda de um buraco no teto de pedra. Um buraco no telhado onde ele e o grande demônio estavam. Ao tentar me salvar, ele arriscou mais do que deveria.

Tudo que cria um ambiente para o aproveitamento de uma obra, de uma história, afeta não apenas a intensidade de seu impacto, mas também as possibilidades de interpretação. Isso é verdade para qualquer tipo de história, mas se torna ainda mais interessante em produtos multimeios, como é o caso de filmes e, em especial, de jogos eletrônicos. Dentro da indústria dos jogos, esse processo de contar uma história através do ambiente é conhecido como environmental storytelling e assume diversas formas.

No caso do exemplo acima, o jogo não tem música alguma nos momentos iniciais da minha jornada, mas assim que encontro o primeiro chefe do jogo uma música frenética começa a tocar. O jogo de luz e sombra, de tons quentes e frios, cria uma atmosfera. A presença de outros “como eu” nos corredores conta uma história. E isso é apenas uma parte do tutorial do jogo.

A cor e a forma dos menus, a cinemática de abertura, o diálogo e os acontecimentos da história, o peso do movimento do personagem, as animações individuais, a forma como os demais seres do mundo reagem à minha presença, os sistemas que controlam o mundo… tudo isso compõe o texto que estou interpretando através de uma experiência participativa. Tudo isso conta uma história - tudo traz indicações de como gostariam que interpretássemos esse texto.

Infelizmente, ainda pensamos muito em jogos como uma experiência de ganhar ou perder, mas seu potencial narrativo e artístico é imenso. Muitos jogos se apresentam como textos muito mais complexos e ricos do que seríamos capazes de criar apenas com letras no papel, mas nosso primeiro instinto é encará-los como um desafio técnico ou tático. E, sim, essa é uma interpretação totalmente válida para quem assim preferir, mas é apenas uma parte da obra e poderíamos aproveitá-los de forma muito mais catártica e profunda.

Alguns meses atrás, fui apresentado por um amigo a Kingdom: Two Crowns, um jogo com gráficos extremamente simples, com sons que indicam apenas o que ocorre na tela. O jogo tem um sistema bem direto: você, o monarca, coleta moedas de ouro e as gasta para construir um reino cada vez mais forte; todas as noites, seu reino é atacado por criaturas feitas de pura sombra e você precisa defendê-lo. Ele me disse que precisava usar uma montaria específica, que tinha a mecânica de atrair cervídeos para a vila para serem mortos por meus caçadores, gerando mais moedas.

Entramos em uma pequena discussão nesse ponto. A montaria em questão era um Grande Cervo, um espírito da floresta e guardião de seus mistérios. Então, de forma alguma faria sentido para mim que ele fosse atrair outros cervos para serem mortos por humanos. Pelo sistema do jogo, isso seria exatamente o que ele deveria fazer, mas para a minha narrativa, não fazia o menor sentido. Nesse caso, para mim, a mecânica e a narrativa por detrás não se encaixavam e isso causou certa dissonância. O que ele me disse em seguida me causou grande desconforto também: “São apenas pixels em uma tela!”

Será?

Não escrevo isso apenas para criticar o jogo. Esse mesmo jogo me permitiu um momento narrativo maravilhoso tempos mais tarde, quando jogava sozinho. As criaturas das sombras sequestraram um cachorro que resgatei da floresta e, mesmo sendo a decisão errada estrategicamente, o apego que criei com o cachorro me levou a resgatá-lo a qualquer custo. O que permitiu que isso fosse uma experiência catártica e rica para mim foi justamente entrar na narrativa do jogo e me envolver com algo além da estratégia otimizada. Afinal, a vida não pode ser otimizada dessa forma racionalista, então por que permitir que meu texto fosse?

No ato de criação de qualquer texto - inclusive dos textos complexos e artísticos que podem ser os jogos eletrônicos - é necessário pensar na coesão de nossas escolhas e dos elementos que ele inclui. Mecânicas, narrativa, visual, arranjo musical, fonte, textura do papel… tudo isso conta algo sobre como gostaríamos que nossos textos fossem interpretados, além de dar possibilidades de interpretação e envolvimento.

E, no ato de interpretação, podemos também escolher trazer mais arte e complexidade para nossa experiência com o texto, seja na criação de headcanons ou nas escolhas que fazemos. Para isso, os jogos se apresentam como obras maleáveis e cheias de possibilidades.

Minha sugestão é se deixar envolver com os jogos e vê-los não como um conjunto de regras e um objetivo, mas como uma história que se pode viver e experienciar como um filme ou livro. Permita-se ver sentidos nas nuances e nas possibilidades, encare jogar como uma experiência artística para além de cutscenes e gráficos de última geração. Sorva a ambientação, mergulhe no mundo que lhe é apresentado, olhe para os personagens e para a história como faria ao ler um livro. Assim, é possível aproveitar todo o potencial dessa mídia que encanta a tantos.



Texto publicado na edição 3 — meios e registros da revista Alcateia.

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