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Paula Cruciol

Comecei e mudei de ideia

Paula Cruciol

ilustração de Mariana Lio



Quando me programei para escrever este texto, meu objetivo era falar do histórico da autoria: como nasceu o conceito de propriedade intelectual, o peso do título “autor” frente a “escritor”, “pintor”, “escultor” ou “músico”. Eu ia falar sobre polêmicas de autoria — quem realmente escreveu esse ou aquele texto, o que é criação e originalidade — e ia terminar numa discussão sobre escrita conceitual, a apropriação na era contemporânea. No fim, este texto seria sobre o nascimento e a morte da autoria. Seria um bom texto. Mas não consegui escrevê-lo. Ele morreu antes mesmo de nascer. Pelo menos como eu imaginava. Mas nem sempre as coisas são como imaginamos.

E talvez você, lendo este texto, esteja triste que eu não vá mais falar sobre esses temas da maneira como planejei, porque eles parecem interessantes, ou talvez esteja aliviado, porque não queria mesmo ler sobre isso como era a ideia inicial, mas uma pergunta permanece: sobre o que é este texto então?

Bem, este texto é sobre uma conversa. Tenho conversado com o Tempo e ele tem sussurrado coisas para mim. Acho que ele esteve muito quieto nos últimos anos, porque parece ter muito a dizer agora. Talvez as coisas tenham se acumulado. Mas o Tempo não sabe falar muito bem. Ele se enrola com as palavras, com as imagens, com os sons. Ele é só ideias.

E não seria bom se as ideias pudessem ser transmitidas como imagens em uma televisão? Você aperta um botão e lá está. Ou se as ideias fossem palavras num papel, você olha e está feito, já entendeu, já está na sua cabeça. Mas é preciso decifrar o Tempo. Talvez por isso digam que o Tempo gosta de jogos e brinca com a gente de vez em quando e talvez por isso ele ganhe vários títulos: é professor quando ensina; médico quando cura; farmacêutico quando é remédio; ônibus quando passa… Não sei se o Tempo tem escolha; as ideias são tudo o que têm e não há muitas maneiras de transmiti-las.

Diferente de mim: eu tenho muitas maneiras de me expressar, de transmitir minhas mensagens, de sussurrar, não tenho apenas ideias, eu posso jogar com as palavras, posso transformá-las em ilustrações, quadros e grafites na parede, posso gesticular e produzir sons, posso ficar em silêncio, posso usar de mil meios e mil registros para construir a minha mensagem, posso discursar sobre ela, posso cantar, dançar, esculpir, posso achar meios de personificar a minha ideia. Há vários caminhos, ainda que, talvez por essa mesma razão, como o Tempo, eu também possa ganhar vários títulos.

E, dessa forma, entre sussurros, eu e o Tempo conversamos. Ele me diz coisas, eu digo coisas de volta e nem sempre a informação é bem transmitida, algumas coisas se perdem no trajeto, no ar, no espaço. E acho que este texto é sobre isso também, sobre coisas que se perderam em algum lugar no meio, nas entrelinhas, no entre isso e outra coisa — a autoria, por exemplo. A autoria se perdeu neste texto. Era a semente do texto, a gênese da sua ideia, mas onde está ela agora? E por que deveríamos procurá-la? Aliás, devemos procurá-la? Já não sabemos onde ela está? Ela está no nome embaixo do título deste texto.

No plano de fundo, uma silhueta de uma pessoa. No primeiro plano, a sombra de duas pessoas conversando uma de frente para a outra. Toda a ilustração parece se desfazer em vários pontinhos.
ilustração de Mariana Lio

Mas está realmente lá? O que era então a autoria que começou o primeiro parágrafo? E por que isso são questões relevantes?

Porque resta a desconfiança — ou pelo menos deveria restar. Considere: quem realmente está escrevendo este texto? Sou eu? Eu, a assinatura embaixo do título? A assinatura é resposta suficiente? Ou é o Tempo, sussurrando por entre os botões do teclado, conduzindo a formação das frases? Não é o Tempo que conduz as coisas? Ou as minhas experiências e opiniões, que levaram a essas reflexões, escreveram o texto? Quem escreveu este texto?

Deveria importar?

A Alcateia já se fez essa pergunta algumas vezes em alguns contextos: A voz de quem escreve, na edição 1,¹ Representatividade para que(m)?² e Representatividade explanatória,³ na edição 2, Quebrando o silêncio,⁴ na edição 3, As várias vidas e mortes de um autor,⁵ na edição 4.

A verdade é que a autoria surgiu de uma noção de propriedade, posse,⁶ e eu não saberia dizer se tenho posse desse texto, se estas palavras, bem aqui, são minhas. Quem sou eu para possuir palavras? Possuir frases? Poderia dizer que sou dona, que tenho propriedade sobre qualquer coisa? Ora, mas essa pergunta nem é tão estranha quanto já foi algum tempo atrás, quando a propriedade intelectual era algo recente. Hoje, já se discute comercialização de propriedade digital, compra e venda de ideias, de arquivos digitais e mesmo isso já é um assunto recorrente.

Claro que o conceito de propriedade intelectual é muito menos sobre palavras do que sobre ideias,⁷ contudo, qual é a ideia deste texto? Ela era uma antes de eu começar a escrevê-lo e tomou outro rumo enquanto os primeiros parágrafos se desenrolavam. Então qual é a ideia sobre a qual a assinatura deste texto tem propriedade? E mesmo a assinatura no início deste texto remete a uma pessoa que já não é a mesma que o finalizou — ainda que ambas carreguem o mesmo nome. Retornamos às primeiras perguntas: sobre o que é este texto e quem o escreveu?

A dificuldade no refletir dessas dúvidas reside no fato de que ideia é um conceito amplo demais, complexo demais. Como o Tempo. E com o Tempo, as ideias se perdem, se modificam, se desenvolvem, se dissolvem, se desconstroem. Como este texto.

A criatividade é regida pelo Tempo e por ideias, mas nenhum desses elementos é estático, nem a criatividade, nem o Tempo, nem as ideias; um interfere no outro a todo instante.

Então talvez este texto seja sobre isso, sobre uma metamorfose inevitável, sobre uma transformação constante e uma inalcançável inércia. O Tempo é a instância máxima da mudança, o eterno opressor de eternidades, a continuidade que impõe o efêmero, o infinito que sentencia o transitório. E, assim, por que deveríamos estar tão preocupados com definições absolutas? Com descrições categóricas? Com perguntas e com respostas?

Sobre o que é este texto? Quem o escreveu? Quem o leu?

Você o leu. Eu o escrevi. Ele é o que é. Não há respostas e há muitas respostas, tudo ao mesmo tempo, cada uma no seu tempo. E assim se constroem temporalmente as produções criativas: com interferências, com variações, com diversas tentativas de transmitir conceitos e construir experiências, com mudança de ideias.



¹ Cruciol, Paula. A voz de quem escreve. Alcateia, v. 1 — Criatividade, pp. 23-26, abr. 2020. Disponível em: https://revistaalcateia.wixsite.com/alcateia/post/revistaalcateia-1-18. Acesso em: 26 abr. 2021.

² Corbett, Claus Augustus; Cruciol, Paula. Representatividade pra que(m)? Alcateia, v. 2 — Identidade, pp. 17-21, jun. 2020. Disponível em: https://revistaalcateia.wixsite.com/alcateia/post/revistaalcateia-2. Acesso em: 26 abr. 2021.

³ Corbett, Claus Augustus. Representatividade explanatória. Alcateia, v. 2 — Identidade, pp. 29-32, jun. 2020. Disponível em: https://revistaalcateia.wixsite.com/alcateia/post/revistaalcateia-2. Acesso em: 26 abr. 2021.

⁴ Cruciol, Paula; Corbett, Claus Augustus. Quebrando o silêncio. Alcateia, v. 3 — Meios e Registros: as formas do texto, pp. 36-41, ago. 2020. Disponível em: https://revistaalcateia.wixsite.com/alcateia/post/revistaalcateia-3. Acesso em: 26 abr. 2021.

⁵ Corbett, Claus Augustus. As várias vidas e mortes de um autor. Alcateia, v. 4 — Vida de Artista, pp. 52-69, out. 2020. Disponível em: https://revistaalcateia.wixsite.com/alcateia/post/revistaalcateia-2. Acesso em: 26 abr. 2021.

⁶ KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Tradução de Edson Bini. Bauru: Edipro, 2003, p. 134-135.

Ibidem.



Texto publicado na edição 7 — tempo da revista Alcateia.

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