Paula Cruciol
ilustração de Mariana Lio
A definição mais popular de voz tende a ser o som ou o conjunto de sons produzidos pelas vibrações das pregas vocais sob pressão do ar que percorre a garganta. Relacionada à prática discursiva, voz é manifestação de opinião, julgamento, súplica, protesto.
A voz na escrita criativa pouco tem a ver com ondas sonoras, mas parece bastante relacionada à segunda definição; no mundo da escrita criativa, é outra palavra para falar do estilo de cada escritor e sua razão de escrever. Vocabulário, expressões, extensões de parágrafo, linguagem, enredo e vários outros elementos combinados de maneira única para caracterizar cada autoria.
Ninguém escreve como eu, ninguém escreve como você — cada um de nós tem a própria voz.
E a voz, no entanto, devido ao seu inegável caráter único, tem sido o centro de discussões cada vez mais frequentes sobre representatividade.
Um texto dá voz a quem escreveu ou permite que quem escreveu dê voz a outras pessoas? A resposta parece estar no conteúdo do texto e na própria identidade de quem escreve. Quem são os protagonistas e os antagonistas e quais são suas vozes, suas opiniões, seus julgamentos e seus protestos? Como isso se relaciona a quem escreveu o texto?
Dependendo de como essas vozes (ou essa voz) se manifesta para os leitores, o texto é bem ou mal recebido. Roland Barthes (1915-1980), sociólogo, semiólogo e crítico literário francês, falou sobre isso em Da obra ao texto, que se tornou um dos capítulo de O rumor da língua. Ele afirma:
A escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo pelo qual foge o sujeito, o preto e branco em que vem se perder toda a identidade.¹
Com isso, Barthes sugere que não é possível determinar de quem são as ideias no texto. Quem escreve se inspira por experiências, reflexões, observações e infinitas outras coisas, e a escrita de ficção muitas vezes coloca-nos frente a conflitos entre nós e nossos personagens, nossas criações. É para isso que serve a ficção, não é? Uma de suas funções parece sempre ter sido, entre outras coisas, a formulação de hipóteses, uma possibilidade de interagir com o que é diferente e permitir o desenvolvimento de diversos cenários.
A escrita criativa dá liberdade a quem escreve para contar qualquer história e é aí que entra o conflito de vozes. As opiniões dos protagonistas, antagonistas, personagens secundários e qualquer outro elemento que possua voz no texto podem se confundir com as opiniões de quem escreveu. E como separar essas opiniões, como delimitá-las? Barthes sugere que essa divisão não seja possível.
Por um lado, isso não parece ser um problema, pois poucos escritores desejam a separação autor-obra; esses dois elementos andam lado a lado, nós queremos reconhecimento. No entanto, dependendo dos objetivos do texto — romantizar, enaltecer, criticar, ironizar, denunciar —, essa fusão acaba sendo perigosa, em especial porque nem sempre os leitores podem determinar o propósito de uma produção. Então, aquele que escreve o texto pode sofrer as consequências de vozes que não são suas.
Em termos práticos: um autor, por exemplo, pode ser caracterizado como machista porque seu protagonista é machista? Ou o autor é uma coisa e sua produção é outra?
Escrever é ter voz, perder voz, ganhar voz ou dar voz?
O que Barthes diz é que não há como estabelecer um limite entre quem escreve e o que foi escrito e, nesse sentido, a solução parece estar na história contada, no que as vozes dizem muito mais no que quem está dizendo, porque independentemente de quem está falando, algo está sendo dito e nesse quesito Barthes não expressa dúvida.
Que mensagem passa um personagem preconceituoso que não sofre consequências ou apresenta mudanças de caráter?
Que mensagem passa um enredo que beneficia personagens opressores? E como essa mensagem está sendo passada?
Como se sentem os protagonistas, como ocorre a narração, qual o sentimento geral ao final do texto?
Essas perguntas parecem mais produtivas para construir a obra e fazer transparecer a voz de quem escreve ou mesmo uma espécie de voz geral do texto.
De qualquer forma, quem escreve precisa assumir responsabilidade pela própria produção, especialmente porque a pluralidade de vozes no texto pode ser tanto uma ferramenta para representar diversidade e opiniões conflitantes como também uma muleta para dizer o que pensa e o que quer evitando consequências. “Não fui eu quem disse isso, foi o personagem”, ou “isso aconteceu porque era necessário para a história, não fui eu quem escolheu”.
Mas que separação existe entre você e o personagem, ou entre você e a história, se foi você quem o criou, quem a escreveu? A fusão autor-texto é praticamente inevitável, não é possível esconder opiniões. Mas é possível dizer algo com elas. Porque as vozes são primeiramente sons e sons são veículos de transmissão de mensagens; é essa transmissão e é essa mensagem que deve ser o foco de quem escreve.
¹ Barthes, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 57.
Texto publicado na edição 1 — experiência criativa da revista Alcateia.
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