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  • Revista literária Alcateia

Representatividade pra que(m)?

Paula Cruciol

Claus A. Corbett

ilustração de Mariana Lio



Histórias precisam ser diversas. Em gênero, em cenários e em personagens. Uma história em que todos os personagens são iguais ou agem da mesma forma acaba se tornando repetitiva, desengonçada, previsível. Da diversidade surgem novas ideias, novos comportamentos, novas possibilidades de mudança — e, com isso, um texto mais interessante e que desperta mais intensamente a curiosidade do leitor.

E para pessoas que, como nós, fazem parte de minorias políticas, essas histórias se tornam muitas vezes frustrantes, já que raramente nos identificamos com os personagens em um nível mais profundo.

Precisamos poder nos ver também nas histórias que consumimos, mas parece que, quando nos colocam em algum papel dentro das narrativas, a maioria dos autores acha que é necessário nos reduzir ao que nos torna minorias: à violência que sofremos, aos estereótipos que o autor acha mais comuns entre pessoas como nós.

Personagens LGBTQ+ costumam ser representades em relação ao preconceito que sofrem e por muitos anos só existiam para contar histórias de sofrimento e busca por aceitação. Personagens negros são mais comumente representados enfrentando situações de racismo e diversas vezes em situação de pobreza. A questão é: uma identidade minoritária passa por questões difíceis que a maior parte da sociedade não passa — por isso é chamada de “minoria” —, mas esses problemas não são o que definem essas identidades. Então por que limitar a caracterização e a jornada dos personagens apenas a esses aspectos?

Se pensamos em cada uma delas como indivíduos, como personagens, elas sempre terão muito mais a oferecer, muito mais histórias a contar. Por outro lado, podemos considerar que um texto que traz personagens diversos e não trata de questões sociais problemáticas é um texto que trata de representatividade de maneira verdadeira?

A construção de personagens — quaisquer personagens — é uma tarefa difícil porque personagens bem elaborados são únicos, têm vidas completas e existências complexas e são moldados por diversas forças sociais, psicológicas, espirituais….

Quatro cabeças de lobo alinhadas uma embaixo da outra do lado esquerdo. Cada lobo tem um aspecto diferente e está em um ângulo diferente. As cabeças iniciam uma linha que faz a ilustração lembrar uma bandeira.
ilustração de Mariana Lio

Mas as relações hierárquicas e o organograma sociopolítico existem e afetam — até mesmo fundam — as identidades e as relações sociais. No entanto, nenhum de nós traz consigo apenas uma identidade. Quantas vezes você não se deparou com um personagem raso, cuja única função era “cumprir cota” em uma história?

Temos exemplos positivos também de personagens bem construídos, complexos e que ainda assim eventualmente enfrentam situações de preconceito ou violência. Um ótimo exemplo disso é o seriado Brooklyn 99 (Lei e Desordem, no Brasil). Desde o primeiro episódio, o rol de personagens é diverso e, apesar de haver mais de um personagem negro ou latino, eles são bem diferentes entre si.

Rosa Diaz e Amy Santiago são ambas latinas, mas as duas não podiam ser mais diferentes. A primeira é representada como uma mulher de ação, agressiva, forte; a segunda, como uma mulher extremamente racional, perfeccionista e com um traço de TOC. Terry Jeffords (sargento e posteriormente tenente da delegacia) e Ray Holt (capitão da delegacia) são dois homens negros, mas com personalidades, sexualidades e aparências diferentes — e nenhum dos dois é representado como um homem agressivo ou hipersexualizado, mais um ponto positivo.

Há também uma reviravolta cômica no final do primeiro episódio em relação às expectativas que temos de comportamento de homens gays e um episódio extremamente emocionante em que o seriado encara o desafio de falar sobre o racismo e o sentimento de impotência que ele pode causar.

Se pensarmos que queremos ser representades em histórias que consumimos para podermos nos identificar com os heróis, com a ação e com a aventura e para passarmos pela catarse de ver uma história semelhante à nossa tendo uma resolução positiva, de que adianta um personagem com uma característica descrita de forma rasa ou ainda que só reforça um discurso de punição por nossa diferença?

Produzir uma história com representatividade é um exercício complexo e requer atenção, cuidado e respeito. É preciso pensar em como colocar personagens diversos e respeitar o aspecto social mais amplo da minoria que eles representam sem os reduzir a apenas essas questões, como se não tivessem nada único em si mesmos. Também é preciso dar profundidade ao personagem sem fugir da realidade daqueles que irão se identificar com ele para não criar uma história alienada, fora da realidade social, pouco verossimilhante, ingênua.

Judith Butler fala de recorte e colagem na construção textual, que seria recortar um personagem ou uma característica e colá-la no seu texto, resultando em enredos mal construídos e personagens deslocados, inseridos no texto sem qualquer contexto ou justificativa. Isso nada mais é do que a falta de cuidado e respeito com o personagem e com sua complexidade.

No fundo, isso é mais uma escolha que fazemos. Criar histórias é fazer escolhas, é decidir cada aspecto que será trazido para a narrativa. O primeiro passo, então, é olhar no espelho. Seja honesto: por que você quer trazer essa representação? É para se ver também nas histórias? É por uma questão mercadológica? Ou isso faz parte de sua trajetória como contador de histórias? Qual o seu objetivo ao escolher uma característica, um cenário, um personagem e uma história para contar a partir dessas escolhas?

Não há respostas erradas aqui, desde que sejam honestas, porque a partir dessas respostas você pode se trabalhar e melhorar sua capacidade de contar histórias diversas. E o primeiro passo para isso é justamente ouvir pessoas diferentes de você, pessoas parecidas com aquelas que você quer representar.

Esqueça um pouco as representações da grande mídia, pois elas usualmente já vêm de certa forma contaminadas por pontos de vista da maioria política. Há exceções, é claro, em especial quando quem está contando a história que você consome escreve personagens que representam ela ou outras pessoas reais da vida dela. Mas há muito mais o alinhamento com discursos rasos sobre as minorias do que histórias respeitosas.

É muito simples: não se pinta uma árvore sem olhar para uma. Então por que se escreveria um personagem diverso sem olhar para pessoas diversas? Muitos já usam as mídias sociais para falar de sua realidade, de sua diversidade. Ouça-as. Investigue. Aprenda com essas pessoas.

Até mesmo se você for escrever sobre uma minoria à qual você pertence, ouça outras pessoas. Afinal, há toda uma interseção de identidades em quem você é.

Mais do que uma questão de capacidade narrativa ou mercadológica, trabalhar a representatividade é um exercício de crescimento pessoal. Portanto, antes de começar a escrever um personagem diverso, pergunte-se: você está preparado para trabalhar em si mesmo também?



Texto publicado na edição 2 — identidade da revista Alcateia.

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