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  • Claus Corbett

As várias vidas e mortes de um autor

Claus A. Corbett

ilustração de Mariana Lio



TW: menções de transfobia e abuso sexual de menores.

Um texto, seja ele no formato que for, é algo vivo. Ele dialoga com outros textos, cria novos sentidos, é interpretado e reinterpretado. Tendo vida própria, ele não deve satisfações a ninguém e não há autoridade sobre seu significado - a arte se faz na apreciação da obra e não em sua criação. Apesar do que o escultor pensa e diz, o apreciador verá o que lhe couber ver.

Este ponto de vista é uma extrapolação de uma teoria que é comumente conhecida como morte do autor por conta de texto homônimo de Roland Barthes. Figueiredo¹ explora essa ideia com base em três autores: Blanchot, que considera o autor como alguém que “sacrifica sua vida porque vive atravessado por fantasmas que habitam seu mundo imaginário”,² que se torna um espaço vazio através do qual a literatura se manifesta; Foucault, que entende o autor como uma função do texto, um “papel desempenhado socialmente pelo autor enquanto produtor de discursos”;³ e o próprio Barthes, que “privilegiava o leitor, aquele que teria o encargo de dar sentido ao texto no processo de leitura”.⁴

Partindo de uma consideração que prioriza o leitor como produtor de sentidos, é simples e fácil pensar em toda e qualquer obra como existindo apenas a partir de sua interpretação e, portanto, no autor como uma figura inerte e inócua. No entanto, como Figueiredo coloca, “A mão que digita no teclado de um computador já não é igual à mão que escrevia no papel”.⁵ Os autores da atualidade são mais presentes, são mais vistos. São celebridades, quando bem-sucedidos.

Figueiredo também afirma que, em publicação posterior, Barthes afirma que “o leitor deseja o autor, que não é sua representação nem sua projeção.”⁶ O autor volta como uma figura à qual o leitor tem mais acesso, mais apego.

O autor como figura pública – e como celebridade – não é novidade. Em uma era em que tantas informações e pessoas são acessíveis online, como Figueiredo coloca, o autor não é mais o mesmo de uma época pré-internet, quando muitos dos best-sellers ou obras de arte eram de criadores que não estavam mais vivos.

Uma fonte riquíssima para estudos sobre a morte e a ressurreição do autor é o caso de J.K. Rowling e de sua atuação como figura pública. Rowling, além de estar sempre presente na promoção de sua obra e em suas adaptações, tem uma presença virtual intensa nas redes sociais. A autora da série Harry Potter despertou debates públicos e em esferas menos acadêmicas sobre a morte do autor por seu hábito de oferecer informações sobre os personagens da série apenas fora de material considerado cânon. Em 2007, a autora anunciou que Dumbledore, grande mentor do protagonista e um dos bruxos mais poderosos de toda a série, era gay. Isso gerou uma resposta muito positiva dos fãs, que entenderam essa informação como parte oficial da obra.

Rowling, no entanto, apesar de todo o controle que tem sobre a adaptação de seus textos a outros formatos, não atendeu às expectativas dos fãs quando essa fase da vida do personagem foi explorada no filme Os Crimes de Grindelwald e qualquer menção à relação dele ou aos sentimentos de Dumbledore foi omitida. Em outros momentos, a autora menciona bruxos negros ou judeus, mas também não os inclui em sua produção concreta.

Esse fenômeno marcou o primeiro momento em que se debateu a ideia de morte do autor por conta da autora. Aparentemente, a opinião da própria criadora não se concretiza na obra e isso torna claro que o autor realmente morre quando o texto nasce. Mas será que chegaríamos à mesma conclusão se um novo livro fosse escrito com cenas de Dumbledore e Grindelwald nos braços um do outro? Essa seria uma nova declaração da autora também, mas não como uma pessoa pública, física, real e sim como a figura do autor. Retomamos aqui a ideia de Foucault do autor como uma função, um papel social.

Entendendo o texto como “um ato de comunicação unificado num complexo universo de ações humanas”,⁷ podemos pensar esses diferentes textos de uma mesma autora como tendo valores diferentes dentro de uma escala de oficialidade. Uma maneira de olhar para isso seria analisar através da ótica da semântica do acontecimento o que diferencia esses textos.

Guimarães⁸ propõe o estudo de atos de comunicação através de cenas em que diferentes lugares políticos do dizer interagem em um jogo entre para quem se diz, quem diz e com que autoridade se diz. Esse último item, em verdade, é o mais importante, pois é apenas a partir do lugar social de onde se diz que podemos entender quem diz. Esse lugar social é também político, portanto, na visão do autor, um lugar de desigualdade.

E o que está em disputa nesse caso é justamente a desigualdade do lugar social de onde J.K. Rowling fala em diferentes cenas enunciativas.

Quando dá uma entrevista ou publica em suas redes sociais, entendemos que ela fala enquanto locutor-autor, alguém com informações que não temos sobre a história e os personagens. Sua expertise se caracteriza no conhecimento do que há por trás dos panos, do que acontece quando não estamos olhando. Ela teria acesso a informações privilegiadas sobre esse mundo fantástico.

Nos livros, lidamos com um locutor-realidade com poder de ditar toda e qualquer faceta da obra e do universo em que ela se insere. Nesse momento, não estamos em contato com J.K. Rowling, mas com a “realidade dura” do mundo de Harry Potter, com sua verdade personificada.

O caso de J.K. Rowling expressa perfeitamente a cisão entre o locutor-autor e o locutor-realidade. O papel social desempenhado por ela na escrita dos livros não é o mesmo que desempenha em sua vida pessoal, em suas mídias sociais. Os lugares políticos que ela ocupa não são os mesmos e, portanto, a desigualdade entre ela e os leitores também não é a mesma. Enquanto o locutor-realidade se relaciona com o leitor de uma distância inimaginável, o locutor- -autor está muito mais próximo dele e fica muito claro no desenrolar dessa história que sua autoridade sobre o universo mágico é muito menor, muito menos concreta.

Podemos ilustrar isso com o que gera revolta e conflito: o fato de que a inclusão de minorias ocorre na voz desse locutor-autor, mas nunca na voz do locutor-realidade, que existe, por exemplo, fora da voz de Rowling na execução dos filmes. Esse lugar político é quem determina efetivamente o que se torna cânon ou não.

O que diferencia mais claramente esses dois locutores está no que Guimarães chama de enunciador, “a representação da inexistência dos lugares sociais de locutor”⁹ e constitui o modo como algo é dito. O locutor-realidade se apresenta através de um enunciador-universal, de forma que “a enunciação representa o Locutor como fora da história e submetido ao regime do verdadeiro e do falso.”¹⁰

Aquilo que é dito pelo locutor-realidade dentro das cenas enunciativas formadas pela experiência de leitura dos livros em si não pode ser questionado dentro dessa relação política (portanto, de desigualdade) entre J.K. Rowling e o leitor.

Já o locutor-autor, aquele que fala nas mídias sociais e pessoalmente sobre o livro, usualmente participa de cenas enunciativas em que enuncia como enunciador-individual, representando “o Locutor como independente da história”,¹¹ portanto com menos autoridade em suas afirmações. Isso é bem exemplificado na primeira situação de “inclusividade póstuma” da autora, que, ao ser perguntada por um fã se Dumbledore já havia se apaixonado alguma vez, responde: “Eu sempre pensei em Dumbledore como [um homem] gay. Dumbledore se apaixonou por Grindelwald e isso aumentou o horror que ele sentiu quando Grindelwald mostrou quem realmente era.”¹²

A figura que adiciona a representatividade não é a mesma que molda o mundo das histórias, mas sim um indivíduo com sua visão pessoal da história e isso é marcado até mesmo pela escolha de palavras e pessoa gramatical: “eu sempre pensei”. Sobra o sentimento estranho de que as pequenas gotas de representatividade que Rowling divide com o público de maneira informal são apenas parte de um headcanon de outra leitora da série.

Mas isso não é tudo. Um outro fenômeno se soma a essa discussão quando se criam cenas enunciativas em que Rowling oferece opiniões sobre questões que existem no mundo real ou comunica verdades sobre si que incomodam, chocam ou ferem seus leitores e fãs da série.

No plano de fundo, uma parede de tijolos escura. No primeiro plano, uma cabeça flutuante dividida em três partes: a primeira, o cabelo e as sobrancelhas, a segunda, os olhos e o nariz, a terceira a boca. É possível ver o oco da cabeça nas porções da testa e da boca. No canto inferior esquerdo há três ícones: um livro aberto, um símbolo de "verificado" das redes sociais e o pássaro do twitter.
ilustração de Mariana Lio

Sua atuação nas mídias sociais, incluindo curtidas em tuítes que a comunidade trans considera ofensivos e transfóbicos, é também um ato comunicativo, mas a cena enunciativa em que se insere difere daquela em que ela fala sobre personagens em suas histórias justamente por não ser um comentário sobre esse mundo. Nesse caso, vemos também uma enunciação de modalidade individual, mas de um locutor-celebridade, que para muitos se relaciona intimamente com o locutor-autor e o locutor-realidade das cenas enunciativas sobre Harry Potter. Essa dificuldade de desvincular as personas políticas e públicas de J.K. Rowling causa insatisfação e decepção não só na pessoa que ela é, mas naquilo que ela criou.

Lindsay Ellis¹³ faz uma análise desse caso e traz um ponto de vista muito interessante: apesar de, na apreciação do texto, ser possível um distanciamento que aplica as ideias da morte do autor, o consumo de conteúdos da franquia como um todo também aumenta o poder político de Rowling enquanto locutor-celebridade e, portanto, o valor de seus dizeres através de uma função de enunciador-genérico, aquele que “representa o Locutor como difuso num todo em que o indivíduo fala como e com outros indivíduos”,¹⁴ trazendo também um ponto de vista externo à sua história pessoal, ou mesmo quando ela menciona suas experiências individuais de abuso como um argumento em favor de sua visão do mundo, enunciando de maneira individual.

O uso de uma plataforma midiática por parte de um artista célebre para defender sua posição política é uma tentativa – consciente ou não – de usar seu lugar político de fala para enunciar de maneira universal, de dizer algo com valor de verdade inquestionável. E isso é uma agressão direta aos fãs e leitores que estão nos grupos sociais alvejados por esses comentários ou que possuem em suas vidas pessoas que fazem parte desses grupos.

O argumento de Ellis é que, no caso de Rowling, a apreciação das obras da franquia enquanto atividade econômica é uma contribuição para essa agressão, pois aumenta o poder político desse locutor-celebridade ao aumentar seu alcance e a repercussão de seus dizeres. Por outro lado, admite que não há uma resposta simples para como agir a partir disso, considerando que o universo de Harry Potter é muito maior do que Rowling.

A YouTuber Shaaba, do canal homônimo, lançou um vídeo¹⁵ em que lida, através das teorias de morte do autor, com essas questões do ponto de vista de uma fã da série que está em um relacionamento amoroso com um homem trans. Nesse vídeo, ela concilia sua relação com o universo de Harry Potter e sua posição política pró-direitos trans. O vídeo vale cada minuto e, em sua conclusão, ela também diz que não vê uma resposta correta para a pergunta “é errado gostar de Harry Potter?”, mas que encontrou sua forma de lidar com essa situação. Ela cita que os valores que vê nos livros também são contrários a uma posição transfóbica e isso a reconforta.

Um outro caso, que tomou proporções menores apesar da gravidade da ofensa, é o da autora de Brumas de Avalon e da série Darkover, Marion Zimmer Bradley. Quando a autora faleceu, sua filha, Moria Greyland, a acusou de abusos físicos e sexuais. Segundo Moria, “Ela era cruel e violenta, e também completamente louca sexualmente. Eu não fui sua única vítima e nem todas as suas vítimas eram meninas.”¹⁶ Além disso, seu segundo marido foi acusado de e condenado por abuso de menores e depoimentos da autora sobre a questão não colaboram para que ela seja vista como uma pessoa íntegra.¹⁷

Considerando a obra de Bradley, que costumeiramente traz conteúdo sexual e, em alguns casos, de violência sexual – em As Brumas de Avalon, Gwinevere é estuprada por um primo distante em uma cena relativamente gráfica e o narrador menciona uma sensação de prazer por parte da vítima –, se torna muito mais difícil separar a leitura da figura que fica da autora, apesar de suas obras também tratarem de independência feminina e de relacionamentos homossexuais. De fato, uma das preocupações de Moria a levou a guardar para si sua história pessoal de abuso: o medo de “ferir aqueles que [Bradley] ajudou.”¹⁸ Seria possível, por exemplo, reconciliar o fato de que o personagem Danilo, no livro A Herança de Hastur, acaba sendo adotado como filho por seu agressor, Dyan Ardais - que, segundo o narrador-realidade do livro, cometeu um crime ainda pior do que o estupro carnal por invadir os sonhos e a psique de sua vítima -, ainda mais quando é dito em continuações da história que o estuprador psíquico mudou e agora é um homem de honra?

Como entender a comparação entre esse agressor e um dos protagonistas da história, Regis Hastur, que tenta a todo momento não demonstrar sua atração por Danilo por medo de ofendê-lo e reavivar seu trauma? A colunista Alyssa Rosenberg faz uma análise profunda sobre o caso de Bradley considerando o papel da autora enquanto voz feminista, enquanto editora e enquanto símbolo de liberdade feminina e sexual e fazendo um paralelo com outros artistas considerados gênios em seus campos:

Este é o mesmo dilema que enfrentam os fãs do trabalho de Woody Allen, que gostariam de acreditar que as personagens femininas fortes do diretor e seu aparente conhecimento das vidas das mulheres são prova de que ele não poderia machucar uma menina.¹⁹

Mesmo que separemos o artista e a obra em momentos em que seus discursos parecem destoantes, seria essa realmente uma prova de que, ao entregar sua arte ao mundo, o autor perece? Mesmo quando informações que surgem posteriormente trazem indícios de discursos sociais que podem permear suas obras, apesar de uma interpretação diferente por parte do observador? Nas palavras de Rosenberg:

Como, então, considerar o trabalho público genial e a suposta vida privada monstruosa? As contradições de Zimmer Bradley levantam uma tese angustiante, porém importante. Sobreviventes podem oferecer uma percepção tremenda da dor e da transcendência. Mas também podem fazê-lo aqueles que cometeram ou facilitaram abusos contra eles.²⁰

Causa espanto, desgosto e toda sorte de sentimentos negativos confrontar a figura pública, às vezes idealizada, do autor e sua vida pessoal ou seus atos comunicativos contraditórios. Tentar compreender qualquer pessoa já é em si um ato complexo e desafiador, pois ninguém é o mesmo em todas as situações e ninguém enuncia do mesmo lugar político em todos os momentos de sua vida. Somos diferentes locutores-x em cada cena enunciativa.

O que gostaria de sugerir com essa análise é que entendamos o autor como um ser complexo e assim também seus textos, sejam eles no formato que forem e com o intuito que tiverem. Talvez a manifestação concreta da morte do autor seja entender que o locutor-realidade do texto, aquele que comunica o que é verdadeiro, não é o mesmo que existe fora do texto.

Em outras palavras, nós, enquanto artistas, somos e não somos a realidade (ou o locutor-realidade) de nossas obras, pois só habitamos esse lugar político no momento de criação. Para universos complexos, como coleções de livros, é plausível revisitar esse lugar, mas não enunciamos a partir dele quando falamos sobre o texto, apenas quando falamos dentro do texto. À parte disso, não podemos ignorar nossa responsabilidade enquanto autores em nossa vida pública ou pessoal, pois aquilo que nossos textos são e produzem ao serem interpretados também é afetado, nesse mundo interconectado, por aquilo que nós somos e produzimos ao sermos interpretados.



¹ Figueiredo, Eurídice. Roland Barthes: da morte do autor ao seu retorno. Revista Criação & Crítica, v. 12, p. 182-194, 2014. Disponível em: http:// www.periodicos.usp.br/criacaoecritica/article/view/73514. Acesso em: 7 set 2020.

² Idem, p. 183.

³ Idem, p. 186.

⁴ Idem, p. 187.

⁵ Idem, p. 193.

⁶ Idem, p. 191.

⁷ Koch, Ingedore Villaça. O texto e a construção dos sentidos. 4a ed. São Paulo: Contexto, 2000. p. 23.

⁸ GUIMARÃES, Eduardo. Semântica do Acontecimento: um estudo enunciativo da designação. 2. ed. Campinas: Pontes, 2005.

⁹ Idem, p. 26.

¹⁰ Ibidem.

¹¹ Ibidem.

¹² Rowling, Joanne apud Smith, David. Dumbledore was gay, JK tells amazed fans. The Oberserver, 21 oct 2007. Tradução minha. Disponível em: https://www.theguardian.com/uk/2007/oct/21/film.books. Acesso em: 8 set 2020.

¹³ Ellis, Lindsay. Death of the Author 2: Rowling Bungaloo. YouTube, 6 jul 2020. Tradução minha. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?- v=NViZYL-U8s0. Acesso em: 8 set 2020.

¹⁴ Guimarães, op. cit., p. 26.

¹⁵ Shaaba. i still like harry potter, is that bad? creator vs creation. YouTube, 7 jul 2020. Tradução minha. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=YAnNUbKYdok&t=548s. Acesso em: 8 set 2020.

¹⁶ Greyland, Moria apud Shamsian, Jacob. Marion Zimmer Bradley’s daughter accuses her of abuse. Entertainment Weekly, 27 jun 2014. Tradução minha. Disponível em: https://ew.com/article/2014/06/27/marion- -zimmer-bradleys-daughter-accuses-her-of-abuse. Acesso em: 8 set 2020.

¹⁷ Rosenberg, Alyssa. Re-reading feminist author Marion Zimmer Bradley in the wake of sexual assault allegations. The Washington Post, 27 jun 2014. Tradução minha. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/ news/act-four/wp/2014/06/27/re-reading-feminist-author-marion-zimmer- -bradley-in-the-wake-of-sexual-assault-allegations/. Acesso em: 8 set 2020.

¹⁸ Greyland apud Shamsian, op. cit. Tradução minha.

¹⁹ Rosenberg, op. cit. Tradução minha.

²⁰Idem.Traduçãominha.



Texto publicado na edição 4 — vida de artista da revista Alcateia.

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