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Entre uma e mil palavras

Revista literária Alcateia

Paula Cruciol

Claus A. Corbett



Sem palavras, não há textos escritos. Palavras são elementos essenciais que constituem a literatura, e por mais que as ideias por trás das palavras tenham importância inestimável, sem um meio para transportá-las elas não iriam para o papel. Isso parece óbvio, no entanto é fácil relegar esse fator a uma posição inferior na escala de preocupações de escritores. Tendemos a nos preocupar com a mensagem que o texto vai passar, o sentimento que ele vai despertar, a originalidade das ideias e deixamos a preocupação com as palavras para emergir nos momentos em que precisamos de um sinônimo para substituir aquele termo que já apareceu demais ou daquela que tem significado específico e se encaixaria bem no parágrafo.

Apesar de não haver textos escritos sem palavras, é fácil esquecê-las quando pensamos no todo da obra. Alguns gêneros, como a poesia, encontram maior facilidade na escolha e combinação de termos, pois nela a importância de cada fator é mais fácil de ser notada. No entanto, em gêneros de prosa, como narrativas e ensaios, a ideia geral sempre parece superior às suas partes constituintes. No entanto, são as palavras as responsáveis por nos tirar do mundo real e nos fazer mergulhar na literatura e é por meio de suas combinações, ritmos e significados que atribuímos valor aos textos.

Para que essa transcendência ao mundo ficcional aconteça, contudo, é necessário que o texto não somente esteja bem escrito, mas que as situações nele presentes estejam descritas de maneira interessante. Escrever muitas vezes é sinônimo de descrever; usar palavras para explicar a posição de objetos em um ambiente, suas cores e texturas, as lembranças que eles evocam, assim como para ilustrar diálogos entre personagens, suas emoções e reações, da mesma forma que seus atos, ideais e características. Mas dificilmente um texto sobrevive só de descrições, especialmente porque elas tendem a ser vistas como as partes mais desinteressantes das obras.

Isso se dá porque frequentemente descrições são concebidas como uma espécie de dicionário do mundo real, onde cada coisa tem a própria lista objetiva e sem graça de características que não vão muito além da aparência. A desvalorização das descrições também é consequência de uma das dicas mais famosas dadas aos escritores: show, don’t tell, ou seja, não diga, mostre, que incentiva escritores a colocar mais ações no texto, deixando-o mais dinâmico e intrigante. Entretanto, dificilmente um texto sobrevive só de ações, assim como não sobrevive só de descrições. É essencial que haja um equilíbrio, mas, acima de tudo, um entendimento do próprio texto.

O autor Frank Baker, por exemplo, em seu livro Os pássaros faz várias descrições de elementos do cotidiano, coisas que geralmente não nos daríamos o trabalho de descrever, pois são comuns a todos os leitores, como ônibus, telefones, prédios; no entanto, Baker as descreve como se o leitor não as conhecesse e o faz de maneira que esses elementos tão ordinários pareçam estranhos, de outra realidade. Isso é possível porque o personagem-narrador conta a história a partir de suas lembranças para sua filha, que vive num mundo já muito diferente do dele. A filha, então, não conheceu o que para nós seriam elementos banais do dia a dia. Nesse trecho, por exemplo, o autor descreve escadas rolantes e cabines telefônicas:

Havia escadas controladas mecanicamente que conduziam os passageiros ao seu trem sem que eles tivessem que exercitar os músculos das pernas; e fileiras de cabines telefônicas conde um homem poderia falar com seus amigos a quilômetros de distância. Recordo-me dessas cabines pequenas e fechadas com uma abominação peculiar. Muitas vezes me vi confinado dentro delas, passando mal com o calor e o cheiro rançoso de suor e fumaça de cigarro deixado pelo ocupante anterior. Sim, são muito vívidas em minha mente, aquelas pequenas cabines com seus tubos pretos falantes.¹

O que é interessante observar na descrição feita por Baker é que ela não nos dá somente a dimensão do objeto descrito como também do contexto e da cultura na qual ele está inserido. Assim, as escadas rolantes não são apenas estruturas mecânicas como também um comentário a uma espécie de sedentarismo ou preguiça dos passageiros na época do narrador-personagem, que não gastavam energia para se mover. Os telefones e suas cabines também dão ideias da mudança que ocorreu no universo ficcional. Não parece mais haver telefones, “tubos pretos falantes”, no momento da narração e as cabines parecem especialmente estranhas.

Em outro momento, Baker aproveita a descrição de propagandas para dar um panorama das mudanças na sociedade. Aqui, o que chama atenção é a maneira como a descrição foi feita, nos levando a enxergar algo familiar por outra perspectiva, como se o autor nos abrisse os olhos e dissesse “veja como isso é estranho; você não presta atenção e ignora porque está acostumado, mas veja como isso é estranho”:

Uma propaganda era um elogio irreal e com frequência altamente artístico — com palavras ou fotografias — de vários produtos de consumo cujos fabricantes desejavam vender ao público. Os artigos eram enunciados com tanta perspicácia que geralmente as pessoas eram induzidas a comprar coisas de que não necessitavam de verdade.²

Aproveitando a atenção do leitor, que até o momento não recebeu nenhuma informação nova ou se surpreendeu com a descrição, Baker insere uma crítica sutil, ainda em meio à descrição, de modo que uma fagulha se acende em nossas mentes e de repente ganhamos um novo olhar, um novo entendimento do que antes parecia carregar significado já esgotado:

Nada escapava à propaganda — não, estou enganado. Dois artigos de interesse universal, armamentos e contraceptivos, nunca, até onde me lembro, receberam anúncios de propaganda.

Assim, um livro muito descritivo, ao ter suas descrições feitas de maneira original e criativa, ganha novas camadas, nuances e profundidades.

Por outro lado, a descrição excessiva traz outros significados e reações. É o caso no clássico O Senhor dos Anéis, especialmente no segundo volume, As Duas Torres. A descrição dos alimentos que Sam e Frodo consomem e da paisagem por onde passam ocupam grande parte da obra e podem, em partes, se tornar cansativas, repetitivas. A ação dessa parte da história também é mais lenta e menos dramática, por exemplo, do que durante a fuga e perseguição que leva os hobbits do condado até Valfenda, ou durante as batalhas ou a viagem cheia de acontecimentos da Sociedade do Anel enquanto estão todos juntos. Não só há menos coisas acontecendo, como as descrições parecem se tornar mais detalhadas. Se assemelham a pintar um quadro em grande detalhe, mas com pouco movimento.

As descrições, por esse lado, são como pinceladas no texto: quanto mais você faz, mais detalhes terá o resultado final, mas mais tempo levará para concluí-lo e mais informações estará transmitindo e quanto menos você faz, mais foco dá às informações principais, mas menos aspectos orbitam o centro da pintura e mais rápido será para construir sua obra.

Descrições tendem a ser a parte mais parada do texto, mas apenas quando não há propósito nas descrições além de ambientação. O que aconteceria com o seu texto se algumas descrições fossem omitidas? Ou se cada personagem descrevesse algum objeto de uma forma diferente, mostrando pontos de vista e esforços interpretativos diferentes? Ou ainda se a descrição fosse usada como um fator enfático e não um simples descrever? Fazer perguntas a si mesmo e às palavras escritas pode ser uma estratégia interessante para abordar essa parte da obra de forma original e envolvente. Descrições podem ser feitas em poucas ou muitas palavras, em mais ou menos situações, mas dificilmente elas escaparão da narrativa, então por que não fazê-las brilhar um pouco? Por que não se dedicar um pouco mais a elas?



¹ Baker, Frank. Os pássaros. Tradução Bruno Dorigatti. Rio de Janeiro: Darkside Books, 2016. p. 53.

² Idem, p. 61



Texto publicado na edição 3 — meios e registros da revista Alcateia.

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