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Paula Cruciol

Àqueles para quem produzimos

Paula Cruciol

ilustração de Mariana Lio



Inspirar-se em algo ou alguém para produzir arte é diferente de colocar uma dedicatória na obra já pronta. A diferença mais notável inicialmente são os tempos: inspira-se antes de produzir e dedica-se depois. Outros aspectos que os distinguem são a menção explícita: nem sempre ficará nítido em quem nos inspiramos para produzir nossa obra e nem sempre vão poder afirmar com certeza o que exatamente foi matéria prima, mas a dedicatória é sempre categórica: para essa pessoa específica — sem dúvida, sem hesitação, sem rodeios. Contudo, em ambos casos produzimos e finalizamos nossas práticas com um objetivo comum e básico: queremos que a obra seja apreciada, pensamos sempre em um alguém que a receberá.

Esse alguém pode ser nós mesmos, produzindo para nossa própria interpretação, análise e catarse. Produzindo para colocar para fora algo que estava dentro, produzir para guardar dentro o que estava fora. Produzir para entender o que estamos pensando, sentindo, passando. Produzir para anos depois ou semanas depois ou horas depois.

Esse alguém pode ser outra pessoa, como se no início da produção houvesse um “essa é pra você” invisível. Às vezes uma pessoa determinada, como uma dedicatória, às vezes um grupo de pessoas, às vezes alguém que não sabemos bem quem, às vezes a quem possa interessar.

Toda arte é produzida para ser apreciada por alguém.

Entendendo texto como toda forma criativa de arte e leitor como todo aquele que observa e absorve a obra, concluímos, então que todo texto precisa de um leitor. Seria estranho pensar que um texto pudesse ser produzido sem um destino, sem alguém para o apreciar. Poderíamos até dizer que um texto sem leitor não existe. Jacques Derrida, no entanto, diz o contrário: que o leitor não existe sem o texto.

Duas mesas com embalagens de comida sujas. Na mesa do canto direito inferior, um bilhete pode ser lido "te encontro lá".
ilustração de Mariana Lio

O filósofo produziu inúmeros estudos na área das linguagens e em uma entrevista, que se tornou o livro Essa estranha instituição chamada literatura, ele afirma: “Por definição, o leitor não existe. Não antes da obra e como seu simples ‘receptor’’.¹ De certa forma, poderíamos entender essa frase pela perspectiva de que só nos tornamos leitores no momento de leitura, ou seja, o leitor seria muito mais uma função que a descrição de alguém com o hábito ou que executa a ação de ler, mas Derrida aqui não se refere a uma função. Ele fala do leitor.

E quando falamos em leitor, a primeira coisa que vem em mente é o leitor ideal. Ele seria a personificação do público-alvo da obra em uma única pessoa. Quantos anos ela tem? Qual seu gênero? Qual sua orientação sexual? Qual sua nacionalidade, seus interesses, inclinações políticas, opiniões? Quais seus hábitos, seus medos, suas aspirações, seu modo de vida? Pensamos no público ao mesmo passo que pensamos no objetivo da obra: quem será atraído por esse conteúdo, por essa produção? O que pensarão a respeito e o que farão com isso? O que eu, produtor, quero que façam com isso?

Assim, o leitor ideal reúne um conjunto de características análogas a coordenadas geográficas para determinar o destino da produção. Mas o leitor ideal não existe, é ideal, uma projeção descolada da realidade. Nem todos os leitores da nossa obra se encaixam nas especificações de público-alvo e não temos muito controle sobre a trajetória da obra uma vez que ela sai das nossas mãos. Entretanto, o leitor a quem Derrida se refere não é o ideal.

O leitor de Derrida não existe, mas com uma condição: a obra. Sua inexistência relativa se pauta na existência do texto: se o texto existe, o leitor também. Nesse ponto, o conceito de leitor que entendemos e o conceito de leitor do filósofo divergem. Enquanto o leitor ideal do senso comum é um destinatário ideal que deixa de existir para ser substituído por leitores reais, ou seja, deixa de ser a representação de um público para se tornar indivíduos distintos — por isso, inclusive, a mudança de singular para o plural —, o leitor de Derrida é quase o oposto: ele não existe durante o processo de elaboração da obra, apenas depois de sua finalização. Assim, o surgimento da obra como tal, e não como rascunho ou trabalho em desenvolvimento, é também o nascimento do leitor de Derrida.

Esse leitor não é passivo em relação à obra, quer dizer, não só a recebe como uma espécie de coletor de textos, ele é ativo. A obra, nos estudos do filósofo, “produz seu leitor, um leitor ainda inexistente” que se forma com a interpretação, “um leitor que seria ‘formado’, treinado, instruído, construído, até engendrado, digamos inventado pela obra”.² Derrida fala diretamente do leitor real, que, absorvendo a obra e refletindo sobre ela, se modifica de tal forma que pode ser considerado “criado” a partir da própria leitura. O texto, nesse sentido, modifica a pessoa, modifica o leitor e o torna outro.

Todo texto, em algum momento, deve ser lido por alguém, mas isso só acontecerá se quem for ler tiver interesse pela leitura. O leitor de Derrida e o leitor ideal do senso comum são iguais nisso: são sujeitos que leem. E só lê o texto quem tem interesse no texto. Então o que há no seu texto que pode despertar interesse em quem o lerá? O que vai fazer que o seu texto seja lido até o fim? E o que acontecerá depois?

Se você chegou até o fim desse texto, você pode ser considerado o leitor ideal no qual pensei enquanto escrevia. Pode se encaixar nesse formato, nesse modelo e as ideias que você tinha antes de ler o texto talvez tenham se modificado ao longo dos parágrafos. Talvez agora você seja uma pessoa levemente diferente da que iniciou a leitura, talvez tenha outros pensamentos, outras opiniões que não tinha antes. Então quem é o leitor do texto, afinal? Quem era você antes e quem é você agora? Quem é você depois de ler este texto? E mais importante: o que você vai fazer agora?



Este foi para vocês,

Paula Cruciol



¹ DERRIDA, Jacques. Essa estranha instituição chamada literatura: uma entrevista com Jacques Derrida. Tradução de Marileide Dias Esqueda. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

² Ibidem, p. 117.



Texto publicado na edição 5 — dedicatória da revista Alcateia.

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