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  • Revista literária Alcateia

Sob/sobre perspectiva

Julia Helena de Oliveira

ilustração de Mariana Lio


A perspectiva é um meio curioso de fazer a arte rotacionar. As diferentes formas de vermos o mundo, nossas distintas maneiras de escrever, desenhar e representar o que desejamos. Um mesmo objeto pode variar imensamente quando colocado na perspectiva de dois indivíduos diferentes.

Dois autores veem uma rosa nascendo no asfalto: um poderá construir uma dramatização em volta da beleza que nasce na cidade terrível, o outro pode muito bem dizer “é só uma flor, ué, praguinhas dessas nascem em todo lugar”.

A perspectiva informa o sentido — e não apenas para produzir. Duas pessoas observam uma obra de arte, a primeira tece diversas interpretações — “Seria isso uma metáfora para a vida?” — a outra verá apenas borrões. E não é que ela não goste de arte, ela só gosta de borrões.

A imagem de um rosto ou de um corpo correndo é composta pela figura de um peixe, um fantasma, um cogumelo, um sapo, ramos de folhas e listras.
ilustração de Mariana Lio

Ilusões de ótica são o exemplo mais óbvio de como cada pessoa percebe o mundo de sua própria forma. Você vê um corvo, seu amigo vê um gato. Você vê azul e preto, seu parceiro vê dourado e branco.

A perspectiva informa o sentido. O texto é uma questão de perspectiva. A arte, aliás, é uma questão de perspectiva.

O próprio fato de identificar algo como arte parte de uma perspectiva que leva em conta, sim, questões teóricas e acadêmicas, mas também (ou, talvez, principalmente) questões de gosto e estética, que são apenas discursos pessoais e sociais em sua expressão máxima.

A perspectiva informa o sentido. Por isso, nossa proposta de hoje é trazer uma nova perspectiva para um texto de outra pessoa. Você pode conversar com um amigo, um conhecido, ou mesmo se juntar ao nosso Discord (link no ícone lá em cima no site!) para encontrar alguém para fazer este exercício com você.

Aprecie o texto que lhe for enviado como você faria normalmente. Tire suas conclusões. Tome suas decisões. E, a partir disso, crie um novo texto. Pode ser no mesmo formato ou não, pode ter apenas os sentidos que você viu no texto ou ser algo que o complementa, algo novo.

Por fim, converse com a outra pessoa e explique o que você viu e o que você criou a partir disso. Observe quanto as perspectivas de vocês condizem uma com a outra e onde elas divergem. Vocês podem até mesmo criar algo novo em conjunto, se quiserem.

Neste exemplo, traremos dois textos: o primeiro é a provocação e o segundo, a nova perspectiva.


Receita de um autorretrato

(provocação por Claus A. Corbett)


Fascinado por aquele estranho que parecia que já conhecia há anos, perguntei:

— Afinal de contas, quem é você?

Ele vestiu o chapéu de cozinheiro e me encarou com seriedade.

– Pega uma lata de leite condensado e bate com três ovos e um pouco de pimenta. Cozinha em fogo baixo – mas lembra de aumentar o fogo em intervalos irregulares – e adiciona aos poucos uma ou duas ou sete pitadas de açafrão. O importante é deixar a cor certa: aquele vermelho queimado que vimos aquele dia, sabe? Não, pera, já saiu diferente…

Tacou a panela na pia sem nem prestar atenção.

– Ok, vamos tentar de novo. Vamos usar de base o suco de melancia. Agora adiciona aí um pouco de rúcula e um pouco de agrião. Orgânicos pra ter aquela ardência. Farinha pra consistência. Ovo pra dar liga. Vamos assar numa forma bem legal e... droga, não ficou igual.

Afetou irritação maior do que sentia e gesticulou para que eu me livrasse da maçaroca.

– Third time’s a charm. Teremos sorte dessa vez. Vamos começar com o verde. Vai direto pro agrião. Isso. Agora... carne moída. De vários cortes. Não esquece o pimentão. Vermelho, claro. Tomate? Que tal... beterraba? Scheiße! Deu tudo errado.

Mais uma receita desprezada.

– BISCOITO DE GENGIBRE! Vamos moer, picar, bater no liquidificador. Agora... um pouco de sorvete de macadâmia. Leite. E alho-poró. Tem sal do Himalaia?

Fez aquele silêncio breve e moveu a panela para o lado. Suspirou.

– Última vez que tento fazer isso. Vamos lá... Pensa numa pizza de pepperoni. Isso. Vamos tirar um pouco da massa. Aliás, pega só o recheio. Maravilha. Direto no liquidificador. Não, nem lava, usa assim mesmo... Onde tá o cacau?

Saiu para buscar e parou no meio do caminho com a expressão de quem tinha tido uma ideia brilhante. Voltou correndo, pegou o caldeirão e jogou todas as receitas descartadas lá dentro, misturando sobre o fogo.

– E é tipo isso... só que meio diferente.

Decidi dar minha opinião:

– Eu tenho medo disso.


(continuação do texto anterior)

(nova perspectiva por Mariana Lio)


– Eu tenho medo disso.

– Eu tenho medo disso?

O estranho com aquele bendito chapéu de cozinheiro parou em frente a panela, pensativo.

– A cor avermelhada até que está legal, mas… não é igual à daquele dia...

– Nunca iria ficar, trouxa, os tomates estão mais maduros hoje! Isso não me parece bom… Mas se bem que aquela rúcula foi uma ideia boa, o apimentado traz uma graça sensual para essa maçaroca esquisita.

Ele inflou o peito, orgulhoso.

– Eu disse, orgânicos são ótimos.

– Podem ser, mas o sabor não ornou com a melancia nem com o sorvete de macadâmia. Os sabores devem seguir uma linha de racioc-

– Nem pense em terminar essa frase!

Ele bateu na mesa com as duas mãos e impulsionou seu corpo em um giro 360º até próximo a pia.

– Se estivéssemos buscando sentido - apontou para a minha cara - eu pediria um delivery!

Respirou fundo como quem busca paciência, deixou cair os ombros e fez aquela cara de piedade que me deixa sem jeito.

– Vamos... pelo menos está diferente da última vez.

– Mas a intenção não era ficar igual?

Simplesmente não me ouviu. Ele se distraiu com alguma coisa na gaveta de panelas.

– Vamos encontrar um recipiente digno dessa iguaria.

– Comprei uma tigela de vidro na semana passada, deve estar no armário de cima.

– Nesse? Ah, você está maluco! Nunca que uma tigela dessa daria conta! Aqui, vários potes de sorvete. É isso mesmo!

Ele me deu os potes e uma concha, gesticulando para que eu os enchesse.

Num pulo, como se tivesse tido outra ideia brilhante, ele sumiu para a lavanderia.

– Isso!

Escutei ele gritando empolgado seguido de barulhos de coisas caindo no chão.

– Isso é perfeito!

Ele estava com uma caixa gigante nas mãos, balançando-a de um lado para o outro em cima da cabeça.

– Quando você terminar, vamos colocar os potinhos menores aqui dentro.

– Para quê?! - coloquei a última concha de massa num pote.

– Para ficar mais organizado. Me ajude com isso, venha.

– Voilá!

O desconhecido no chapéu de cozinheiro pareceu satisfeito. Com um sorriso cansado e uma gota de suor escorrendo da testa, ele olhou para mim e me agradeceu.

– Não foi do jeito que eu esperava, mas a gente criou algo único.

É… criamos. Acho que meu medo disso tudo era por não entender o que estava acontecendo. Ainda não entendo, mas acho que posso melhorar a receita. Amanhã pego um pote de sorvete daqui. Talvez se eu colocar uma colher pequena de essência de baunilha...



Proposta de exercício criativo publicada na edição 3 — meios e registros da revista Alcateia.

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