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  • Revista literária Alcateia

Quem contesta o inquestionável?

Julia Helena de Oliveira

ilustração de Mariana Lio



Na inevitável tentativa de entendermos o texto, construímos impressões, preferências e significados e, muitas vezes, tais interpretações não condizem com as intenções originais do autor, porém é importante frisar que isso não deslegitima a opinião do leitor. Melhor dizendo, uma análise que tenta vincular-se apenas à finalidade pré-estabelecida pelo autor perde uma grande experiência de leitura.

Em seu texto O Rumor da Língua, Roland Barthes enuncia que “Uma vez afastado o autor, a pretensão de ‘decifrar’ o texto se torna totalmente inútil”.¹ Decifrar o texto seria nada mais nada menos que atribuir a uma obra complexa apenas um único significado limitado, apenas uma leitura.

O sentido do texto pode e deve ser ditado também pelo leitor, por suas interpretações e estruturas de sentimento desenvolvidas pela sua experiência. Tal entendimento não deve ser inserido de fora para dentro, ou seja, por um ser individual, pois quando falamos de construir uma compreensão da obra, o autor, necessariamente, deve estar fora do texto.

Desconfiar de um personagem é o trabalho do leitor. Especificamente, vamos recorrer ao narrador não confiável como exemplo, pois é um instrumento perfeito para explorar as diferentes visões de diferentes pessoas. O que torna o narrador um personagem não confiável? O próprio leitor.

Não há como especificar com estruturas e tópicos explicados como um leitor desconfia de um personagem, já que a experiência de leitura é algo tão pessoal, mas há noções comuns, conteúdos e pormenores que se repetem. Estes seriam as lacunas de memória, as autocontradições, as pequenas mentiras para outros personagens e as digressões para evitar mencionar alguns assuntos.

A trajetória tracejada de um barco no oceano de um local marcado com um X até o mar aberto.
ilustração de Mariana Lio

Um conceituado exemplo de narrador não confiável é o presente no livro e filme homônimo As Aventuras de Pi, de Yann Martel. Piscine Patel, “Pi”, fica completamente à deriva no oceano, apenas ele e Richard Parker, um tigre. Após seu resgate, quase um ano depois, seus salvadores não conseguem acreditar nas histórias que ele conta sobre o que presenciou: histórias e aventuras incríveis, lugares impossíveis de existir. Após o ceticismo e a recusa de muitos em acreditar em sua história, Pi conta uma nova versão, muito mais trágica, mas ao mesmo tempo, crível; “se você se contenta com o que é crível, para quê você está vivendo?” Por fim, o leitor não consegue não ter dúvidas sobre a história real, cada um tendo espaço para as próprias interpretações. Nunca teremos uma resposta única sobre o que aconteceu naqueles meses no oceano. A questão da obra é: isso importa? Ambas possibilidades coexistem sem que precisemos eleger a “verdadeira”.

É quase impossível discutir narradores não confiáveis sem citar nosso maior exemplo nacional, Bento Santiago, o Dom Casmurro de Machado de Assis. Nos primeiros anos após a publicação, o leitor que ainda desconfiava pouco do que lia era levado a acreditar em Bentinho. Machado de Assis construiu um impecável retrato do que a elite intelectual brasileira prezava: um personagem sensível, apegado à infância e devoto à mãe, apaixonado pelo seu primeiro amor, elegante e bom homem, inocente aos interesses duvidosos da esposa, uma mulher que “vinha de baixo”.

Foi apenas setenta anos após o lançamento do livro que uma professora norte-americana, que não partilhava do ideal de elegância sentimental da elite brasileira, percebeu as falhas no caráter de Bentinho e a duvidosa história que ele contava. Percebeu que, até então, o leitor via Capitu apenas pelo olhar de cima, dos proprietários, o próprio Brasil conservador. A ampla inteligência da personagem era reduzida pela sua capacidade de trair o marido, toda sua sagacidade era vista negativamente.

A partir desse momento, uma das maiores discussões da literatura brasileira nasceu. Diversas leituras irromperam para contestar o que até então aparentemente não era questionável: Capitu traiu Bentinho? De uma obra inquestionável, hoje dispomos de uma obra aberta e um narrador não confiável. Das leituras já feitas, temos uma investigação de caráter quase policial, um levantamento de evidências que só podem levar à conclusão do adultério; um homem inocente e romântico sendo corrompido por uma mulher interesseira; uma reviravolta, onde Bento Santiago é o culpado, uma alma egoísta e ciumenta. Há até aqueles que hoje em dia duvidam que era de Capitu que Bentinho tinha ciúmes.

Há versões muito bem elaboradas de Dom Casmurro e de As Aventuras de Pi para se dizer que há uma conclusão. O autor pode construir algo que para ele seja inquestionável, mas para o leitor sempre haverão aberturas para interpretação. Precisamos mesmo de uma conclusão? A forma mais elevada de interpretar um livro é ter a certeza de que não há certezas.



¹ BARTHES, Roland. A morte do autor. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 51.



Texto publicado na edição 2 — identidade da revista Alcateia.

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