Paula Cruciol
Claus A. Corbett
Sinônimos são diferentes palavras com os significados semelhantes. Recursos para dizer a mesma coisa sem que o discurso fique repetitivo. Maneiras distintas de chegar ao mesmo entendimento evitando o eco no texto. Elementos da linguagem que a ampliam, repetindo-a sem repetir. Sinônimos: palavras diferentes com significados semelhantes.
Mas sinônimos não são a única estratégia para variar a maneira de se dizer algo. Outros recursos, além das palavras, também funcionam com o mesmo efeito.
Às vezes, a melhor forma de se dizer algo, por exemplo, é não dizendo nada. Em silêncio.
Olhares, gestos, imagens. A ausência de som não equivale à ausência de significado. A ausência de palavras não equivale à ausência de texto.
A linguista Eni Orlandi, em seu livro As formas do silêncio,¹ explica que o silêncio não só pode transmitir mensagens como também não é apenas uma ausência de sons ou palavras. Isso acontece porque, no vocabulário convencional, as mensagens são construídas a partir de um jogo binário no qual as palavras são uma coisa ou outra, com significados pré-determinados e combinações limitadas para transmitir emoções, informações, manifestar resistência, violência e tantas outras possibilidades dentro dos contextos. Isso quer dizer que, basicamente, as palavras afirmam através de tudo que elas não afirmam e assim o entendimento é construído num jogo dual de exclusão.
Contudo, o silêncio está fora desse jogo. Não há uma coisa ou outra no silêncio. O silêncio vai além disso, ele “significa em si mesmo [...] [e] faz parte da constituição do sujeito e do sentido”.² Assim, o silêncio, por si só, se sustenta. A linguista explica que para a linguagem transmitir algo é necessário um outro, um espaço para onde o significado vá e se construa e esse espaço, por sua vez, exterior à linguagem, seria o silêncio.
Sempre que algo é falado, algo também é silenciado.
Falar e calar são duas faces da mesma moeda.
Para entender melhor como funcionava o silêncio na comunicação e nos textos, Orlandi o categorizou em seu livro, dividindo-o entre silêncio fundador e política do silêncio. O silêncio fundador, ela explica, é “aquele que existe nas palavras, que significa o não dito”.³ Aqui, o próprio dizer resulta no não dizer, a fala revela o que não pode ser dito em voz alta e a mensagem do silêncio é passada pelas entrelinhas. O silêncio fundador é mascarado pela presença das palavras. Já a política do silêncio é dividida em duas, o silêncio constitutivo e o silêncio local.
O silêncio constitutivo é “o que nos indica que para dizer é preciso não dizer (uma palavra apaga necessariamente as outras palavras)”,⁴ sendo assim inevitável, intrínseco ao se expressar. Nesse sentido, o silêncio se aproxima do jogo binário do vocabulário que exclui tudo aquilo que não é ao dizer o que é. O silêncio local, por outro lado, é a proibição do falar, a censura, “aquilo que é proibido dizer em uma certa conjuntura”.⁵
Se dizemos com mais do que palavras, também silenciamos mais do que as palavras.
Pensemos no silêncio fundador, por exemplo. Aquilo que é dito cala outras possibilidades. Ao escolhermos desenhar nossa princesa como uma mulher loira, branca, magra, delicada e vestida para festas, silenciamos as princesas com outros cabelos, de outras etnias, com outros corpos e outras representações sociais. Isso se torna especialmente danoso quando esse silenciar se torna um discurso social.
As representações midiáticas viram espaços de silenciamento tanto ao representarem idealizações inatingíveis quanto ao representarem estereótipos. Se a mulher negra é a empregada doméstica que traz o café, ela não é a cientista que vai salvar o mundo. Se o amigo gay é aquele que auxilia a vida amorosa dos protagonistas, ele não é o protagonista da sua própria história de amor.
Quando escolhemos usar o “padrão” social, silenciamos tudo que há fora dele e lançamos uma profecia que se concretiza apenas por existir. Mostramos o que achamos que há e não vemos o que há de diferente, silenciamos a possibilidade dessas existências e seguimos reproduzindo um mesmo discurso por já termos silenciado outras possibilidades. Tornamos sinônimos, por exemplo, “princesa” e “loira”.
Neste momento, podemos pensar sobre como, pensando no silêncio constitutivo, se mantém as possibilidades ao não dizer - mas como se aplicar isso a mídias visuais, por exemplo? Posso escrever um livro inteiro sem descrever o cabelo de um personagem, mas na primeira cena já mostrarei como é. Manter as possibilidades de interpretação se torna um exercício muito mais complexo e é preciso escolher, afinal, qual interpretação se manter. Teremos a Hermione loira e classicamente britânica dos filmes ou a Hermione negra de Harry Potter e a Criança Amaldiçoada?
A interpretação mais comum daquilo que não é dito tende a ser o padrão de outras histórias e ocasiões em que algo é dito — e, portanto, as interpretações que se alinham ao que é silenciado nesses discursos usuais geram críticas. Como ocorreu com Hermione.
Por outro lado, em momentos em que o dito já silenciou um discurso representativo dominante, não se está livre das forças hegemônicas que gostariam de dizer outra coisa. Alguns exemplos seriam as representações hollywoodianas de personagens canonicamente asiáticos por atores caucasianos (como no caso de Ghost in the Shell e O Último Mestre do Ar). Os personagens Katara e Sokka são ditos como tendo pele escura na animação original, Avatar, mas são representados por dois atores de pele extremamente clara na adaptação live action, O Último Mestre do Ar. Algo similar ocorre com Katniss Everdeen em Jogos Vorazes: a jovem de cabelos negros e “pele de oliva” do livro é representada por Jennifer Lawrence, com sua pele clara e cabelos castanhos-não-tão-escuros.
Nesse ponto, o que vemos é um silenciamento. Na conjuntura das grandes telas dos cinemas, é proibido contar as histórias de pessoas não caucasianas. O que sempre foi dito sobre heróis e protagonistas é que eles se encontram dentre aqueles que são entendidos e se entendem como padrão social, portanto também sempre foi dito nos silêncios da falta de representatividade que eles não podem ser negros, asiáticos, queer… e o silêncio local, a censura, é uma política e se reforça nas práticas sociais.
E aquilo que pode quebrar o silêncio é exatamente o dizer. Portanto, quanto mais dizemos que uma mulher negra pode ser uma heroína, que um menino asiático pode ser o Avatar, mestre dos quatro elementos, que uma pessoa homossexual pode ser protagonista de sua própria história de amor, mais silenciamos o discurso de que apenas pessoas padrão são de importância.
Por isso, continuemos a dizer.
¹ Orlandi, Eni Puccinelli. As Formas do Silêncio: nos movimentos dos sentidos. 6. ed. Campinas: Editora Unicamp, 2010.
² Idem, p. 61.
³ Idem, p. 24.
⁴ Ibidem.
⁵ Ibidem.
Texto publicado na edição 3 — meios e registros da revista Alcateia.
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