Julia Helena de Oliveira
ilustração de Mariana Lio
Os novos romances históricos, por mais que tentem passar ao leitor a sensação de uma atmosfera clássica, camponesa e polida, são um terreno complexo, colérico e que dificilmente agradará a todos os gostos: há aqueles que cobram por voz feminina e representatividade, enquanto do outro lado há aqueles que preferem que a narrativa se atenha totalmente à realidade histórica da época — e, como veremos, esta é uma discussão mais profunda do que aparenta ser.
No momento cultural em que vivemos, há tantas adaptações de obras clássicas quanto livros novos sendo escritos, ambos servindo-se da mesma fonte e período. O cinema sempre recorreu à fonte inesgotável que é a literatura. Diversas adaptações cinematográficas foram feitas a partir de livros clássicos e canônicos, e por muito tempo o esperado do espectador era ver exatamente a mesma obra da qual já foi leitor com pouquíssimas alterações. Entretanto, essas versões caíram no comum e passaram a interessar menos, já que a sociedade evolui e , com ela, os pensamentos. Ainda é interessante observar como vivia a população de tempos anteriores, porém é natural sentir falta de elementos que a cultura da época suprimia: a voz dos que eram calados.
As novas obras de época e adaptações de clássicos nos mostraram que é possível enriquecer uma trama já conhecida com novos elementos sem que se perca o essencial do original. Percebemos, então, que os filmes e séries que se mostram idênticos às obras clássicas em que foram baseados causam menor interesse — e até desapontam. Da mesma forma, os romances de época atuais têm uma melhor recepção quando descrevem realidades pouco tocadas nas narrativas do passado.
O ponto que parece causar arrepios em alguns leitores é: até onde é permitido ir para se manter a precisão histórica? Na verdade, qual é a realidade da precisão histórica?
Por mais que nos filmes que você passou a vida assistindo não apareçam muitas feministas, deficientes e pessoas negras, queer e indígenas, elas sempre existiram e sempre estiveram presentes na sociedade, mesmo que marginalizadas no âmbito narrativo — sabemos bem que não apenas nele. Não existiam apenas negros escravos ou indígenas incompreensíveis “sem civilização”. Ao criarmos uma obra que se passa em determinado período, é uma escolha sua deixá-los de fora ou representá-los estereotipados.
É a ignorância do público que leva aos tais comentários raivosos sobre cobrança por mais diversidade, agindo em nome da “precisão histórica” que não deve incluir tais representações. É a partir da imprecisão histórica que surgem as desculpas, e muitos agem preconceituosamente sem ao menos saber. Muitas vezes, esse discurso não foi baseado em nenhum estudo que a pessoa tenha feito e sim em algo que ela tenha assistido por muito tempo e, portanto, simplesmente se acostumou e adotou como verdade.
Fomos acostumados e criados para acreditar na visão de Europa branca, patriarcal e elitista, a maior criação ideológica do imperialismo, que nos acompanha até os dias de hoje. Nos séculos passados, o romance não foi apenas uma forma de entretenimento, mas também uma forma de concretizar esse imperialismo.
Importante intelectual palestino, Edward Said¹ foca, em sua pesquisa sobre cultura e o colonialismo, na dimensão artística da literatura, a narrativização da sociedade. Para o autor, o imperialismo não se concretiza apenas pela violência e pela conquista da terra, pois esses fatores dependem especialmente de influência para se alastrar. Essa coerção ocorre a partir de representações, ideologias e imagens emblemáticas, fáceis de guardar e reproduzir e, por isso, nesse sistema o romance encontra um fértil campo para atuar.
Apesar da finalidade do imperialismo ser a conquista de territórios, a discussão sobre quem tinha direito sobre a terra era decidida pelo âmbito da narrativa e, dessa forma, o romance se tornou o principal método para o colonizador afirmar sua identidade e nacionalidade, apagando as “margens”, aqueles que não interessavam na construção de um homem branco herói.
Liberdade criativa é essencial para a escrita contemporânea. Escreva o que quiser escrever, mas esteja preparado para as análises e críticas e todas as consequências de suas palavras. Tomar responsabilidade é o primeiro passo; o segundo é tentar compreender o que o outros autores pretendem com suas obras, mesmo que seja algo que você pessoalmente discorde. Abra espaço para analisar, se permitir novas visões e leituras de coisas que você já conhece.
Com isso em mente, o que realmente queremos é permitir um espaço seguro para essas adaptações e novas perspectivas sobre o passado.
Citando exemplos contemporâneos, em Doctor Who, série britânica da emissora BBC, o décimo segundo Doutor, vivido por Peter Capaldi, caminha pela Londres do século XIX com Bill Pots (Pearl Mackie), que diz que a cidade estava “um pouco mais negra do que aparecia nos filmes”, fala que causou um choque e críticas positivas da audiência, pois de fato negros são quase inexistentes nessas adaptações, o que não quer dizer que eles não estavam lá desde o início, bem antes de começarmos a cobrar por diversidade.
Tudo isso nos leva para as obras contemporâneas e a desculpa do machismo e da falta de diversidade. Pois mesmo que escrevamos sobre o passado, “não poderia fazer diferente, estamos falando de séculos atrás, tudo bem relevar o comportamento machista e violento do protagonista e a falta de personalidade da mocinha, porque era assim mesmo, colocar diversidade é uma imprecisão histórica!” Talvez você já tenha visto esse tipo de comentário em alguma rede social, seguido de um discurso raivoso.
Avalie por um momento esse cenário muito comum: dois romances escritos no mesmo ano, ambos apresentam machismo, um é situado em tempos atuais e outro na era vitoriana. Um receberá duras críticas e, do outro, ouviremos: “tudo bem, por que na época era assim.”
Uma coisa é ler Jane Austen, sabendo que a escritora tinha uma noção de machismo que para sua realidade era comum, outra são mulheres do século 21 escrevendo romances machistas com personagens fracas e influenciáveis pelo grande homem branco, rico e bom. Não releve: critique, cobre.
Ninguém menos que o tal do imperialismo criou essa imagem que vemos os leitores e espectadores repetindo sem questionar. Ele o fez tão bem que ficamos até indignados quando algo sai desse padrão. Outra vez, a “imprecisão histórica” em nome das formas de entretenimento que você se acostumou a consumir.
Por fim, é interessante citar uma obra que soube fugir muito bem disso, a série Anne with an E, baseada no clássico Anne of Green Gables, da escritora canadense L . M . Montgomery. A série da showrunner Moira Walley-Beckett teve a coragem de explorar uma história canônica e trazer um novo frescor, novas tramas e ideias, sem que por nenhum momento se perca a essência da querida protagonista, Anne Shirley.
O novo tipo de público criou uma necessidade e curiosidade muito grande em ver o lado dos que não eram retratados nas antigas adaptações, o que a série Anne with an E faz muito bem, mostrando os indígenas canadenses, o povo negro de Trindade, o racismo na Ilha do príncipe Eduardo e uma comunidade de artistas queer. Embora Anne possua uma personalidade que recusa quaisquer preconceitos, outros personagens muito interessantes, como Marilla, Diana e Rachel Lynch, devem lidar com seus preconceitos, descobrindo que o mundo vai muito além da pequena sociedade onde vivem.
É esse tipo de adaptação que queremos ver mais por aí; queremos ver nossos amados personagens inseridos no mundo não eurocêntrico, queremos representação não forçada e espontânea.
¹ SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. Denise Bottman (trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
Texto publicado na edição 1 — experiência criativa da revista Alcateia.
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