Julia Helena de Oliveira
ilustração de Mariana Lio
“E o fim de nossa jornada será chegar ao ponto de partida”
— T.S Eliot
Eu aprendi um segredo.
Está um pouco mais claro agora.
Tudo está fora de ordem.
É confete.
O que é certeza que encontraremos em uma narrativa? Palavras, um ponto de vista e o tempo. Usamos o tempo de forma automática. Tão automático quanto a utilização de palavras, ele é uma das ferramentas essenciais para construção de uma narrativa.
Toda narrativa é construída de múltiplas relações entre duas séries temporais: o tempo da história contada e o tempo que usamos para contá-la.
Primeiro, usamos o momento da narração, que remete ao instante em que a história começa a ser contada em relação ao momento em que ela supostamente se desenrola. É o posicionamento do narrador: ele pode começar contando coisas que aconteceram antes, situadas no passado, ou pode simplesmente narrar enquanto vive, enquanto experimenta tudo, o leitor acompanha a obra junto com o narrador.
Também usamos a velocidade da narração para remeter à relação entre a duração da história (dias/anos) e a duração da narração (passagem do tempo em termos de número de páginas), isso significa que podemos contar um dia de um personagem em trezentas ou três páginas, brincamos com o tempo: um mesmo período de tempo narrativo pode durar muito, por vários capítulos, ou durar um instante, uma linha.
Acima de tudo isso, também usamos a ordem do tempo, cronológico ou anacrônico.
Se eu dissesse que essa mesma frase que você lê agora foi minha primeira frase escrita para este artigo, você acreditaria? E ainda mais importante, como escolhi usá-la bem aqui, onde ela faz sentido, faz diferença tê-la escrito primeiro? Ao criarmos uma narrativa, dificilmente temos um pensamento cronológico: podemos idealizar uma história a partir do seu final, começando pelo meio da trama. Entretanto, a partir do momento em que montamos por completo a narrativa, o final ainda será o final, não importa o que surgiu primeiro. A memória do autor é anacrônica, ela pensa fora de ordem, mas o leitor sempre terá uma experiência cronológica, começará do início e terminará no final, pois a experiência literária necessita de sentido para ser consumida. Você pode começar a narrativa pelo que seria seu desfecho, mas mesmo assim, ela estaria ordenada de forma a fazer sentido ao se ler o todo.
Mesmo quando extrapolamos a ideia de tempo em diferentes obras, isso só se dá pelo âmbito da narrativa, nunca pela escrita. O ser humano escreve e pensa linearmente, nossa ortografia tem uma direção, então quando mexemos com o tempo na literatura, é sempre com a narrativa, não com as palavras. É possível, por exemplo, mostrar visualmente o tempo passando no sentido contrário em uma obra audiovisual (como o filme Tenet, de 2020), ou até mesmo em diversas timelines que acontecem ao mesmo tempo (série The Witcher, 2020). Entretanto, quando levamos isso à escrita, isso é feito de forma completamente diferente, apontando e descrevendo linearmente, a descrição de um tempo que corre ao contrário é mais específica, já que o recurso da escrita não permite a descrição e a visualização das ações da mesma forma que uma obra cinematográfica.
A hipótese de Sapir-Whorf teoriza que a língua que você fala determina o modo como você pensa e como enxerga o mundo. Um dos exemplos populares da teoria é o dos povos esquimós, que sabiam identificar tipos de neve distintos uns dos outros, pois sua língua possuía um vocabulário extenso quando se tratava de falar sobre água congelada. É com essa teoria que o filme A Chegada introduz pela primeira vez como pensam os heptapodes.
Villeneuve construiu uma de minhas obras preferidas sobre o tempo. A Chegada parte do momento em que a humanidade tem seu primeiro contato com extraterrestres, um momento de pânico e incertezas: o que eles estão fazendo na terra? A linguista Drª Louise Banks é chamada para trabalhar na comunicação com os extraterrestres, que possuem a forma heptapode (sete pés). Enquanto a fala dos alienígenas se dá por ruídos e grunhidos, sua escrita se dá por símbolos circulares, que não possuem início ou fim para leitura. Enquanto nós, seres humanos, levamos segundos ou minutos para concluir uma ideia na escrita, os heptapodes podem construir uma frase completa em um segundo. Sua língua e a mente não funcionam como a nossa (no caso do português, nossa ordem mais comum se dá por “sujeito, verbo, complemento, adjunto”), a ideia da frase é dada de uma vez só, em um único símbolo. Usando a hipótese de Sapir-Whorf, chegamos em como esses seres entendem o tempo: sem início ou fim, sem um ponto de partida e um de chegada, o tempo para os heptapodes não é só circular, ele parece cair em volta dos seres, tudo existe ao mesmo tempo.
Obras que usam o tempo na construção do universo, mas não o usam como o centro principal da narrativa, tendem a ser minhas preferidas. O “tempo” não é o tema da obra, mas uma ferramenta. Ainda mais do que isso, admiro obras que concebem o tempo como algo que cai à nossa volta.
Quando pensamos em obras literárias que brincam com o tempo narrativo, costumamos pensar nas digressões. Esse tempo narrativo é interrompido várias vezes por outros acontecimentos e pensamentos. Entretanto, a digressão das ideias ainda não representa por completo a subversão do tempo como algo que cai à nossa volta, pois ainda não encontramos uma forma de transmitir ideias que não fossem pela nossa escrita perfeitamente linear. Sempre lembro, com certa graça, de uma das primeiras frases do romance Brás Cubas.¹
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo.
No romance, as memórias do defunto autor não são contadas como ele diz nessa introdução. Ele não começa pelo final e termina no começo, os capítulos e acontecimentos se embaralham e são contados pelo que parece ser a vontade do personagem em falar sobre elas. São assim nossas memórias, anacrônicas.
Mesmo assim, parece muito mais fácil para o cinema alcançar esse formato de tempo que admiro tanto. A série The Haunting of Hill House tem meu apreço exatamente pelo mesmo motivo que A Chegada me conquistou tão facilmente.
No que começa como um dos meus monólogos preferidos, os cinco filhos que compõem a família Crain estão no clímax da história (que prometo tentar não estragar com spoilers), em que a irmã recém morta, Nell Crain, aparece para os outros em um local que prefiro não especificar (spoilers). Seu fantasma aparece de canto, olhando para ninguém em específico, dizendo: “Está um pouco mais claro agora. Nós já estivemos, todos nós, tantas vezes e nunca percebemos”.² Os quatro irmãos ignoram, não conseguem entender com quem ela está falando, acham que ela não pode ouvi-los e que está em um transe interno, o que ela diz não faz sentido. Até que a irmã mais velha diz para os outros “Sinto que já estive aqui antes”³ e Nell responde:
Nós já estivemos, todos nós, tantas vezes e nunca percebemos. Está um pouco mais claro, tudo está fora de ordem. O tempo, eu sempre pensei que o tempo fosse como uma linha, que nossos momentos fossem como dominós e eles caíam um em cima do outro e assim por diante. Só dias, um depois do outro em uma longa fileira entre o começo e o fim. Eu estava errada. Não é nada assim. Nossos momentos caem à nossa volta como chuva, ou… neve. Ou confete.⁴
O que impressiona na cena é que não se trata de um monólogo, mas sim de um diálogo que já havia começado para ela. Na forma como Nell percebe o tempo depois de morrer, o diálogo já estava acontecendo.
A forma como pensamos no tempo pode criar narrativas incríveis, ainda mal aprendemos o que podemos fazer com o tempo.
Como podemos criar ciclos narrativos intermináveis? Ainda não tenho as respostas, comecei esse artigo por vários lugares, essa foi minha última linha escrita, mas isso também nunca fará diferença para quem lê, o que significa que a experiência temporal foi toda minha; eu escrevi um texto fora de ordem, vocês o lerão como uma experiência quase linear.
O que não faz sentido no começo pode fazer sentido agora.
Eu aprendi um segredo sobre o tempo, talvez agora vocês consigam entender.
Acho que está um pouco mais claro, tudo está fora de ordem. O tempo é confete.
¹ Assis, Machado. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ática, 1992.
² The Haunting of Hill House. Direção de Mike Flanagan. Estados Unidos: Amblin Television, Flanaganfilm, Paramount Television, 2018. 1 temporada (572 min.), son., color. Legendado. Disponível em: https://www.netflix.com/search?q=haunting&jbv=80189221. Acesso em: 26 abr. 2021.
³ Ibidem.
⁴ Ibidem.
Texto publicado na edição 7 — tempo da revista Alcateia.
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