top of page
  • Revista literária Alcateia

O drama no jogo: espiral de ficção

Susana Agnes Santos

ilustração de Mariana Lio



Life is Strange é um jogo da categoria storytelling lançado em 2015 pela Square Enix. Em 2017, foi lançada pelo mesmo estúdio uma extensão com os acontecimentos anteriores à sua primeira temporada, Life is Strange: Before the Storm, protagonizada por Chloe, a coadjuvante de Max no primeiro lançamento. Me debruçarei aqui sobre esta extensão a partir de uma cena específica.

Chloe é uma adolescente vivendo na pequena cidade de Arcadia Bay, onde raros são os acontecimentos interessantes. Após perder o pai em um acidente de carro no qual estava presente, Chloe passa a ter problemas em casa e na escola. Entendida por todos como rebelde, sente-se solitária e com saudade da amiga Max, que mudou de cidade devido a uma bolsa de estudos para se dedicar à fotografia. A trama inicia-se quando Rachel, uma das alunas mais populares na escola por sua impecabilidade curricular e sucesso nas atividades como atriz, protege Chloe de uma briga em um show de rock. A relação entre elas é estabelecida de modo rápido e intenso, seja no campo da amizade ou da paixão (rumos dependentes das escolhas feitas pelo jogador dentro da narrativa) e é vista com desconfiança por familiares, amigos, funcionários da escola etc. Mas a lealdade de Chloe diante de Rachel apenas cresce e, ao lado desta, embarca na busca por respostas acerca de um conflito envolvendo os pais de Rachel.

Um dos temas condutores da narrativa é a apresentação da peça de teatro A Tempestade de William Shakespeare, com Rachel fazendo parte do elenco. No dia da apresentação, uma série de acontecimentos e o apelo de Rachel demandam a participação de Chloe como substituta de uma das atrizes. Chloe, que nunca esteve no palco e sequer conhecia o texto da peça, precisaria improvisar. Rachel faz o papel de Próspero, mago e nobre renegado, e Chloe interpreta Ariel, espírito a serviço de Próspero, desejoso de liberdade.

Uma carta cuja porção inferior lê gêmeos e o restante ilustra duas pessoas, uma de cabeça para cima, uma de cabeça para baixo, juntas pela cintura.
ilustração de Mariana Lio

Momentos antes da apresentação começar, o jogador, que conduz as escolhas de Chloe, tem a opção de ler as falas que deverão ser trocadas entre Ariel e Próspero. No palco, a memorização dessas falas pelo jogador será colocada à prova, sintonizando a ansiedade do jogador à de Chloe, mas sem prejudicar de fato a cena. Isso acontece porque o jogo conduz o jogador à percepção de que a dinâmica entre Próspero e Ariel se assemelha à de Rachel e Chloe. Então, o “improviso” de Chloe (a partir do jogador) baseia-se na experiência fora de cena com Rachel. Ou seja, no limite, a necessidade de improviso é falsa, ou melhor, ficcional.

Nesta cena, então, Life is Strange: Before the Storm brinca com os limites do universo ficcional, da intertextualidade e da metalinguagem. Coloca em uma mesma esfera jogo de storytelling e teatro, inserindo o jogador em um palco, a enfrentar o desafio de memorizar falas e “fingir”, ficcionalizar uma atuação. Ou seja, entrelaça as atividades do jogar e do atuar, expandindo as possibilidades da primeira e reafirmando os aspectos de jogo da segunda, como o improviso ou o bate-volta rápido de falas entre uma dupla de personagens.

A partir da linguagem do teatro, Life is Strange: Before the Storm insere uma segunda dimensão ficcional em sua narrativa. E apela para uma impressão de fusão da “realidade” interna do jogo, ou seja, a dinâmica entre as personagens fora de cena, com a ficção teatral, colocando Chloe e Ariel sob uma única identidade, o mesmo para Rachel e Próspero. Alude, enfim, a uma espécie de suspensão da ficção, alusão esta que, paradoxalmente, é ficcional, já que ainda estamos dentro de um jogo.

Já em outro ponto da narrativa, o jogo ressalta seu próprio aspecto de jogo ao homenagear outra categoria, quando Chloe (a partir das ações do jogador) precisa jogar RPG com determinados personagens. Então, novamente o jogador experimenta recursos lúdicos supostamente alheios ao universo de Life is Strange: Before the Storm.

A maior referência em Life is Strange: Before the Storm é, afinal, A Tempestade. O subtítulo do jogo se deve à abertura do primeiro lançamento, Life is Strange, com nada mais e nada menos do que uma tempestade destrutiva, assim como na peça shakesperiana. Já Life is Strange: Before the Storm, proporciona a percepção expandida do elemento da tempestade: metafórica na relação entre Chloe e Rachel e suas identidades, intertextual na encenação da peça e nos títulos de seus capítulos e literal no fim da narrativa, evidentemente. O jogo possibilita então, a partir de diversos recursos, que o jogador vivencie ao máximo a raiz de sua criação.

A Tempestade¹ é conhecida como a última peça de Shakespeare, sendo considerada uma das mais complexas devido ao seu caráter demasiado experimental em relação às anteriores.² Não é preciso dizer que as experimentações shakesperianas, a rebeldia de Chloe, o anseio de Ariel por liberdade e as transgressões de Life is Strange: Before the Storm conversam um bocado.



¹ SHAKESPEARE, William. A tempestade/The tempest. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2014.

² RAFFAELI, R. Introdução. SHAKESPEARE, William. A tempestade/The tempest. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2014. p. 8.



Texto publicado na edição 6 — ludicidade da revista Alcateia.

23 visualizações

Posts Relacionados

Ver tudo

Listrado

Junho

bottom of page