Julia Helena de Oliveira
ilustração de Mariana Lio
Ouvimos (com todo aquele distanciamento de quem aprende uma nova matéria no colégio) como a semana de arte moderna revolucionou e chocou a arte brasileira, abalando a hegemonia das vanguardas, principalmente a paulista.
O manifesto antropófago, escrito bem depois da semana de 22, procurava por uma releitura da história do Brasil, além de contrariar e expurgar a “realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama”.¹ Para tanto, era necessário realizar uma absorção e renovação do artista a partir da assimilação crítica de ideias e modelos estrangeiros. Simplificando uma teoria muito complexa e passível de múltiplas interpretações, o produto final da antropofagia é criar algo novo, contendo a marca da singularidade de sua cultura. Ao mesmo tempo que rejeita imitações, também rejeita a xenofobia.
Mas, afinal, de onde Oswald Andrade tirou essa teoria?
A antropofagia é o ritual indígena em que um indivíduo incorpora todos os bons atributos de seu inimigo, seja a força, a inteligência ou a esperteza, eliminando as diferenças entre eles. Andrade vê a antropofagia como uma resposta à colonização europeia, pois essa instaurava uma violenta prática de etnocídio, apagando culturas indígenas. A antropofagia seria uma forma de sobrevivência, de perpetuar suas culturas.
Hoje, compreendemos um pouco melhor as diversas práticas e formas de absorção de novas culturas em nossa própria, tendo em mente que nem tudo são flores e que nem todas são aceitas com a mesma desenvoltura que outras. O debate é longo, complicado e, claro, muito necessário. Porém, vamos nos concentrar no que Oswald Andrade chamou de movimento antropófago.
No próprio movimento, há quem enxergue que o essencial é negar a cultura imperialista, enquanto outros defendem que o cerne é absorvê-la. Sem se aprofundar em uma noção do que é certo e o que é errado, propomos uma leitura contemporânea do que seria essa antropofagia para os jovens artistas de hoje, pois teorias e manifestos literários, ainda que feitos por — e para — uma outra geração, podem ser “traduzidos” ao nosso cotidiano e ser amplamente utilizados como auxílio para escrita. “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”.²
Em um ângulo, alertando ser simplório, que apenas arranha a superfície do que propõe Oswald, convidamos a pensar sobre suas próprias obras, seja você músico, pintor ou escritor. Atualmente, é impossível fugir de influências externas; nós consumimos mais informações e representações artísticas do que os modernistas poderiam.
Já absorvemos, mesmo sem perceber, influências, padrões e moldes de outros, seja de um artista internacional ou nacional. Já nascemos uma geração de canibais culturais, nos alimentamos do que vemos e assistimos, criando ligações afetuosas e de admiração. A cada novo livro e a cada novo filme, ingerimos algo que nos torna mais experientes. Somos feitos do que nos alimentamos.
Há muita coisa para se considerar, pois nossa geração é especialista em aglutinar sem racionalizar, sendo que uma das principais características do devorador de Oswald Andrade é a análise, absorver criticamente o que te formará como artista. Consumimos o que é produzido por culturas de massa muitas vezes sem nenhuma forma de avaliação, esquecendo de engolir apenas o que te faria bem, o que te tornará um ser individual. No caso literário, isso influencia diretamente nossa escrita.
Cheios de informações, fica difícil encontrar o que é realmente próprio de sua escrita, nosso estilo se perde em mímesis inconscientes de outros autores. Pela antropofagia, um autor deve possuir um senso crítico maior que a fome.
Piadas à parte, não tente engolir mais do que sua boca pode aguentar.
Enfim, a ideia de escrever afastado de influências é inconcebível. O canibalismo já é irreversível, somos consumidores vorazes, definimos nossas discussões e confrontos a partir do que queremos engolir e repudiamos o que fica preso na garganta. Ainda jovens, temos a impressão de ter nossas crenças e estilos definidos já muito cedo, desconsiderando o que é um processo que jamais termina de fato, sempre sentiremos fome.
Na mais imediata e simples interpretação do manifesto antropófago, é necessário possuir um parecer crítico. Aos que escrevem, pintam e compõem, estejam abertos para experimentar novas tendências, absorver conceitos que antes te pareciam tão difíceis, talvez muito acadêmicos ou complexos, muito lentos para quem consome tão rápido. Experimente os estilos de quem admira, forme-se artista com a consciência de que outros te formaram.
¹ ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropófago. São Paulo: Revista de Antropofagia, 1928. p. 7.
² Ibidem, p. 3.
Texto publicado na edição 2 — identidade da revista Alcateia.
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