Mariana Lio
Em um apartamento pequeno, com janelas grandes, sem quase nenhuma mobília, estamos cansados, melancólicos. Comida. Que comida? Nos alimentamos de papel, de música, de tinta. Somos gênios em conflito por não sabermos traduzir exatamente a ânsia que aperta nossas gargantas. Anjos caídos em busca da expressão individual que meros seres humanos não são capazes de compreender. Esquisitos, dedicados e geniais.
Não nascemos para outra coisa senão a arte.
Na verdade, quando eu era criança, queria ser médica. Meu sonho era ser um Digimon anjo, Ophanimon talvez, mas medicina soava mais plausível. Seguir para um caminho das artes foi uma possibilidade depois do ensino médio, encarada com seriedade só com o final da graduação. Não nasci sabendo o que iria fazer, mudei de ideia várias vezes e isso é normal. É normal, mas essa não é a forma como artistas são encarados pelo público geral ou até por eles mesmos. Nós acreditamos em um estereótipo, a imagem de um ser ideal num mundo livre e desprendido. Porém, paradoxalmente, essa imagem de liberdade limita a compreensão sobre a atuação e a produção artística.
Em filmes biográficos ou sobre a profissão, os artistas são retratados como seres geniais que produzem arte por não saberem fazer nada além dela. Críticos e conflituosos, têm vidas pessoais conturbadas e depressivas, muitas vezes com uma liberdade sexual extremada e uso abusivo de drogas ilícitas. Eles buscam o reconhecimento, mas vivem de pouco, sem saúde ou conforto, pois se dedicam quase exclusivamente à produção. São retratados como pessoas que sentem intensamente, a ponto de serem delicadas demais, quebrarem facilmente e atingirem a fama apenas depois de um final trágico.
Um professor demitido por ensinar seus alunos a aproveitar a vida e o fim trágico de um estudante impedido de seguir seu sonho por conta da rigidez paterna; um grupo de estudantes subversivos de literatura que escrevem sob efeito de drogas e cometem assassinato em meio a um ambiente de liberdade sexual e subversão dos valores canônicos da faculdade; o artista conflituoso com a fama e que produz seus quadros de forma incrivelmente performática. Sociedade dos poetas mortos (Peter Weir, 1990), Versos de um Crime (John Krokidas, 2014), Pollock (Ed Harris, 2001).
Se olharmos por esse lado, um artista sobreviveria no mundo real? Nós escrevemos, cantamos, dançamos, atuamos, desenhamos, produzimos e, sim, estamos em busca da nossa expressão pessoal. Temos o que falar e queremos dizer. Porém, nós também maratonamos séries, discutimos teorias da conspiração de bandas pop e saímos para beber com os amigos. Pagamos nossas contas, lavamos louça e fazemos mercado. E podemos viver da nossa arte. Muitos de nós possuem uma vida confortável e satisfeita, alguns até atingem a fama e ganham prestígio. O melhor? Eles não pertencem ao estereótipo.
Por sermos retratados de maneira estereotipada e, pior, acreditarmos nela, construímos barreiras que limitam nossa atuação e, de certa forma, nossa produção. Podemos começar com os questionamentos sobre nossa aptidão em produzir algo verdadeiro e bom. Isso se aprofunda para uma suposta falta de dedicação. Como assim não conseguimos passar noites em claro produzindo? Somos atingidos também pela desvalorização profissional e financeira, assim como pela consideração de que o que fazemos é um dom e que o desenvolvimento intelectual, criativo e técnico não passa do resultado disso.¹
Assistir filmes sobre artistas, ler biografias e se inspirar neles é uma atitude válida e saudável, mas quem quer seguir carreira nas artes precisa ter em mente que não necessariamente valores e posturas representadas nos filmes se encaixam na rotina e funcionam para todos. Somos artistas, não personagens. Nossa existência é necessária, não trágica.
Não somos estereótipos, somos pessoas. E como qualquer pessoa, não nos encaixamos em descrições genéricas.
¹ Cruciol, Paula. O Paradoxo de Artista. Revista Alcateia, 4, “Vida de Artista”, p. 15-19, out. 2020.
Texto publicado na edição 4 — vida de artista da revista Alcateia.
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