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Paula Cruciol

O paradoxo de artista

Paula Cruciol

ilustração de Mariana Lio



O maior sonho do artista é viver da própria arte. Mas por que isso é tão difícil?

Escrita, pintura, escultura, ilustração, fotografia e tantos outros tipos de produção artística sempre acabam relegados à posição de hobbies, passatempos, atividades a que nos dedicamos quando já demos conta das nossas prioridades de rotina. Sempre algo vem primeiro: o trabalho, o estudo, a faxina na casa, a ida ao supermercado, o descanso depois do dia longo. Mas nossas artes quase nunca são as primeiras nas nossas listas de prioridades. Só nos dedicamos a elas quando “temos tempo”, quando “não temos nada para fazer”.

Contudo, frequentemente nos encontramos querendo nos dedicar mais a elas e, quem sabe, fazê-las nossa ocupação principal.

Além disso, o mercado artístico, como sabemos, tem fama de ser concorrido, exigente, instável, até injusto e vários outros adjetivos, bons e ruins, que nos levam a questionar nosso potencial. Será que somos bons o suficiente? Será que aguentamos a atmosfera da fama? Será que o que bastaria para receber reconhecimento seria conhecer as pessoas certas? Essas e muitas outras perguntas nos levam a pensar que talvez nossa arte possa continuar sendo apenas um hobby e tudo bem, isso já é o bastante para nos fazer feliz.

Várias razões podem nos impedir de nos dedicar à nossa arte — as prioridades da rotina, a concorrência artística e muitas outras —, mas e se uma delas fosse historicamente construída? E se a culpa de você não conseguir passar o tempo que queria com suas produções ou fazer delas sua profissão não fosse somente sua e sim de uma série de acontecimentos fora do seu controle? É sobre isso que fala Roger Chartier, um historiador francês, no capítulo “As figuras do autor” do livro A ordem dos livros, que, apesar de falar somente sobre a esfera editorial, também oferece insights a respeito da comunidade artística em geral.

No plano de fundo, uma parede de tijolos escura. Em primeiro plano, uma pessoa-lobo dividida ao meio, com as metades juntas do jeito errado, formando um rosto completo, porém desfigurado. A pessoa-lobo é envolvida por uma espiral de fios de luz.
ilustração de Mariana Lio

O que acontece é que o artista foi historicamente construído com base em um paradoxo no qual a “glória é a recompensa”, ou seja, o mero reconhecimento da produção artística é o suficiente para o artista, pois “aqueles que são dignos desprezam toda e qualquer consideração mesquinha”.¹ Ao mesmo tempo, é justo que o trabalho de produção artística, seja ele escrever, pintar, esculpir, ilustrar, fotografar e tantos outros, ocasione lucro.

Assim, a profissão na área das artes foi morta pela construção do próprio estereótipo do artista: um gênio da criação desinteressado por qualquer reconhecimento, pois tudo o que faz é fruto de inspiração interior e subjetiva e sua expressão é o objetivo de sua arte, não qualquer tipo de retorno.

Essa construção histórica é uma das responsáveis pela desvalorização do trabalho artístico.

Por um lado, a obra poética e filosófica é identificada a um bem negociável, dotado de um ‘valor comercial’ (como escreve Diderot [filósofo francês]), e que, por consequência, pode ser objeto de contratos e de equivalências monetárias; por outro, ela é tida como o produto de uma atividade livre e inspirada, movida unicamente pela necessidade interior.²

Assim, a arte, resultado de tal processo livre e inspirado, fruto do interior do artista, tende a ser muito mais reconhecida como uma habilidade do que como um trabalho e muitas vezes, inclusive, uma habilidade nata ao invés de uma habilidade na qual o artista investiu e se esforçou para progredir. Dessa maneira, a remuneração mediante uma performance ou uma obra artística tende a ser enxergada como desnecessária e até mesmo artistas estariam dispostos a defender isso.

Produzir para agradar um público é algo frequentemente visto como uma atividade oportunista e pouco artística que a comunidade tende a condenar com certa facilidade. “A submissão de autores às obrigações decorrentes de pertencerem a uma clientela”,³ como diz Chartier, foi inclusive um dos fatores responsáveis pela construção do artista desinteressado, o verdadeiro artista. As artes costumavam ser patrocinadas por famílias ricas e investidores, conhecidos como mecenas e patronos, que, tratando artistas como seus funcionários, pediam obras com a mesma facilidade que as limitavam. A liberdade dos artistas, no entanto, teve seu preço.

Depois de tantos acontecimentos históricos ocorridos muito antes de existirmos ou sequer começarmos a pensar em arte, o trabalho artístico se distanciou de ser visto como possibilidade profissional, carreira autossustentável, e alguns agravantes dessa concepção são até recentes. Não é difícil pensar em alguns exemplos da nossa própria vida quando ouvimos artistas de sucesso declararem que, à princípio, “não queriam nada” com suas obras, que o reconhecimento os surpreendeu, pois eles não o buscavam, que eles jamais imaginaram receber algo em troca de suas produções.

A arte é quase sempre um hobby ao qual nos dedicamos nas horas vagas, porque somos implicitamente ensinados que esse é o lugar dela, que para sermos artistas “de verdade” devemos nos contentar com a produção da arte e que trabalho e remuneração não estão relacionados a ela. Ao mesmo tempo, reconhecemos que a arte precisa ser compartilhada, que deve ser acessível — onde entra a segunda parte do paradoxo.

A remuneração de um artista consistiria na possível construção de um muro de acesso à sua produção que apenas alguns seriam capazes de ultrapassar. E a dedicação a uma arte é igualmente uma barreira, considerando que, nas palavras de Chartier, “o autor vive não da sua pena, mas dos seus bens ou dos seus encargos”;⁴ ou seja, só pode dedicar-se à arte quem tiver condições para tal. Usar tempo para investir nas produções artísticas pressupõe não usá-lo para outras necessidades, exige certo conforto estrutural.

Chartier reuniu vários acontecimentos históricos para montar uma linha cronológica da evolução da autoria ao longo dos séculos e explicar as diversas situações que contribuíram para o estabelecimento desse conceito, e nós também podemos refletir: o que nos faz artistas? Devemos superar esses paradoxos? Como?

Ser um artista parece ser sempre sobre expressar-se verdadeiramente, seja para reverter algum status, lutar alguma batalha ou fazer alguma afirmação, além de diversas outras utilidades, mas é importante resgatar tais paradoxos para pensar nossa posição como produtores de conteúdo. Esses conceitos e paradigmas influenciam o nosso trabalho? Ou ainda: como nós influenciamos esses paradoxos, como interferimos em sua existência e de que maneira nosso trabalho como artistas se encaixa nesse panorama?



¹ CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Tradução de Mary Del Priore. 2ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. p. 42.

² Ibidem.

³ Idem. p. 43.

⁴ Ibidem.



Texto publicado na edição 4 — vida de artista da revista Alcateia.

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