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Revista literária Alcateia

Machinima, a nova modalidade narrativa

Vinícius E. Russi

ilustração de Mariana Lio



Pensar em ludicidade durante essa edição da revista sempre acabava me levando à infância. Essa foi a associação mais rápida porque, de muitas formas, somos ensinados a abandonar todas as brincadeiras e a deixar de lado a imaginação quando passamos para a fase adulta, já que agora a lógica e a experiência, em teoria, deveriam ser suficientes para guiar nossas ações e escolhas. E, embora hoje em dia a imaginação comece a ser reconhecida mais e mais como competência indispensável, com certeza foi na minha infância que ela estava em seu ápice.

Quando criança, eu tinha um costume muito peculiar. Sempre que sentava à mesa para comer, eu imaginava o prato de comida como um mini campo de guerra. De um lado, estavam as comidas de que eu gostava: arroz, batata, carnes e alguns legumes; e, do outro, comidas de que eu não gostava naquela época: feijão e verduras. A batalha era repleta de selvageria, traição e reviravoltas, e o procedimento básico era: conforme eu comia, ia enfraquecendo cada um dos oponentes (o que acabou se tornando uma forma muito eficaz e criativa de eu comer comidas de que não gostava, já que queria ver a equipe de comidas boas vencer). Mas o que mais me chama a atenção hoje em dia sobre esse hábito é a adaptabilidade da narrativa.

Em seu estudo sobre a história da narrativa, Yilmaz e Ciğerci afirmam que ela é

…tão antiga quanto a história do ser humano. Uma vez que a compreensão humana está amplamente relacionada à narração de histórias – especialmente em relação ao conceito de ‘relocação’, que significa ser capaz de se referir a eventos pertencentes a um tempo e lugar diferentes da comunicação em andamento.¹

E essa relocação se deu de várias maneiras ao longo da história. Por meio da fala, as pessoas contavam histórias umas às outras, passavam e alteravam essas narrativas de geração em geração, como é o caso dos contos de fadas e das fábulas, por exemplo. Há também o meio escrito, talvez o mais comum, de se registrar histórias, nos conhecidos livros, quadrinhos, jornais e revistas. E, com o avanço da tecnologia, mais aprimoramentos foram surgindo até formar a gama de mídias com que estamos familiarizados hoje em dia.

Uma carta com uma imagem e "criatividade" na porção inferior. A imagem é uma sombra usando óculos no plano de fundo e, em primeiro plano, uma tira de rolo de filme com dois elementos mantendo-a em pé.
ilustração de Mariana Lio

Quando falamos em videogames, não é difícil notar sua relevância para o gênero narrativo, uma vez que há jogos incrivelmente ricos em tramas e personagens e cenários, imergindo os jogadores no mundo e na história criada (além de possuir o elemento de jogabilidade, o que só aumenta a imersão e o entretenimento). Porém, mesmo em jogos sem um enredo evidente, um novo tipo de produção audiovisual perpetua a habilidade humana de contar histórias: os machinimas.

O termo vem da junção das palavras machine (máquina), animation (animação) e cinema (cinema) e consiste em uma série de vídeos feitos usando aspectos de jogos de videogame. Esse novo tipo de produção audiovisual aproveita os recursos já finalizados dos jogos na montagem do filme, personagens assumem o papel de atores e os ambientes servem de cenário, possibilitando maior acessibilidade a algo que custaria muito dinheiro se fosse feito com elementos reais ou mesmo produzido com efeitos especiais.

Mas essa vantagem de ter “tudo pronto” é compensada com uma série de habilidades que os criadores precisam desenvolver, dentre as quais podemos destacar “o planejamento, a produção de um roteiro, captura de imagem e som a partir de sua interação no jogo em questão, a captura de voz para os personagens, edição de cenas e sons ambiente e de trilha para a obra, e até conhecimentos básicos de programação, entre outros”.² Além do exuberante volume de criatividade necessário para produzir as narrativas e montar e dar sentido a tudo o que foi produzido.

Afinal, justamente aqueles jogos que não teriam a trama como aspecto principal de sua jogabilidade acabam sendo as bases mais comuns para machinimas, como GTA, The Sims, Minecraft, entre vários outros. Diary of a Camper é a produção considerada o primeiro machinima; ela data de 1996 e foi produzida pela United Rangers Films a partir do jogo Quake. Um recente exemplo de machinima brasileiro é a série Girls in the House, produzida pelo canal Rao TV a partir do The Sims 4.

O gênero de machinimas funde de maneira interessante os papéis de jogador e de criador.

E se pensarmos a partir da ótica de que o modo de produção do conteúdo é uma apropriação da tecnologia do jogo pelo indivíduo, o machinima poderia ser uma forma, mesmo que não planejada pelos desenvolvedores, de jogar? Seria esse jogador um produtor ou um diretor, ou até mesmo um artista?³

Essas são reflexões ainda existentes no mundo do entretenimento, e não há consenso da posição que os machinimas e seus criadores ocupam diante de jogos e filmes. Ainda são tratados como produções audiovisuais amadoras e inferiores, principalmente pela dificuldade de enxergar todo o processo de criação e construção que ocorre por trás das câmeras.

Mas uma coisa é certa: machinimas carregam consigo uma forma nova e criativa de fazer gameplays e de contar histórias. Não importam os recursos, sempre encontramos formas diferentes de narrar, de criar, seja por meio de jogos, seja por meio do meu prato de comida. A necessidade humana de contar histórias prevalece!



¹ Yilmaz, Recep & Ciğerci, Fatih Mehmet. A Brief History of Storytelling: From Primitive Dance to Digital Narration. In: Yılmaz, Recep; Erdem, M. Nur; Resuloğlu, Filiz. Handbook of Research on Transmedia Storytelling and Narrative Strategies. Hershey: IGI Global, 2018. p. 3.

² Maia, Alessandra; Regis, Fátima; Marinho, Kerolayne; Fernandes, Carolina. Precisamos Falar Sobre Machinima! Uma Introdução ao Fenômeno de Processo de Produção Audiovisual de Videogames. In: 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Joinville: Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2018. p. 7.

³ Ibid., p. 6.



Texto publicado na edição 6 — ludicidade da revista Alcateia.

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