Paula Cruciol
Ok, isto não é uma novidade: poesia e prosa são diferentes, mas você sabe por quê?
Poderíamos começar essa conversa dizendo que a diferença mais marcante entre prosa e poesia é a forma: prosa tende a ser constituída de parágrafos de tamanhos variados enquanto a poesia tende a ser constituída de versos um embaixo do outro agrupados em estrofes. Além disso, a prosa geralmente não segue muitos padrões, de maneira que as categorias e gêneros desse formato dificilmente levam esses aspectos em consideração, enquanto a poesia, por outro lado, é mais familiarizada com regras de composição ditando números de versos, estrofes e até mesmo sílabas.
Mas sabemos que essas características são muito superficiais para definir os dois tipos de texto, considerando que alguns gêneros em prosa ditam regras específicas de composição e a poesia não precisa ser escrita em versos. Isso é visível, por exemplo, nas extensões específicas e estruturas determinadas de certas categorias da prosa, como minicontos, novelas, peças teatrais e cartas, nas imagens compostas pela poesia visual e na reformulação do entendimento de verso na poesia concreta, que dispõe as palavras sem necessariamente considerar as linhas como referência.
O fato é que não há como definir características gerais da prosa ou da poesia, pois há inúmeras maneiras de lidar com uma e com a outra e as “regras” nem sempre se aplicarão a todas as composições. Contudo, não há como igualar as duas formas: prosa é prosa e poesia é poesia e ainda que não possamos identificar exatamente o essencial de uma ou outra, podemos afirmar que são diferentes.
O que aconteceria, no entanto, se o que separa a poesia da prosa fosse também o que elas têm em comum?
No mundo das produções artísticas, todos os textos literários possuem literariedade, por vezes também chamada de poética, que é um conjunto de características, como estilo, linguagem, estratégias de composição, que permitem a classificação dos textos como literários. Se essa definição pareceu um looping, você está entendendo: literariedade e poética são as características que determinam um texto literário, um texto literário é definido por sua literariedade e poética. Esses aspectos existem e, no entanto, não são facilmente identificáveis e não se manifestam da mesma maneira em todos os textos, o que nos leva à mesma pergunta: o que é literariedade? O que é poética?
Para Jean-Luc Nancy, filósofo francês, é o acesso ao sentido. Chamando o aspecto literário de poesia, no seu texto Fazer, a poesia, o autor diz “poesia é fazer tudo falar — e, em troca, depor todo o falar nas coisas”,¹ acrescentando que
...poesia é, por essência, mais e outra coisa que a própria poesia. Ou ainda: a própria poesia pode muito bem ser encontrada ali onde sequer há poesia.²
Fazer tudo falar seria a própria capacidade de encontrar poesia fora do texto literário, de encontrar aquilo que nos fazer divagar, viajar para fora da realidade, de sentir no corpo os efeitos das palavras no papel — ou na tela — enquanto o depor do falar nas coisas seria a nossa própria atitude contemplativa, silenciosa, quando todo o barulho está em nossas mentes ou até mesmo quando não há barulho nenhum e até isso ganha significado.
Isso tudo para dizer que a determinação do aspecto literário é praticamente indeterminável, intrinsecamente paradoxal: da mesma maneira que se pode afirmar sua existência, é impossível determinar seus limites. A literariedade está e não está no texto, ela fala e silencia, está nos versos e está fora deles, sem que seja possível tocá-la, mas sempre conseguindo senti-la.
Ora, isso é inegável: a presença de sentimento nas produções artísticas certamente é um fator que as caracteriza como tal. Mas onde exatamente está o sentimento? Em que momento o escritor o descreve e em que momento o leitor o percebe?
Como dito anteriormente, Jean-Luc Nancy, tecendo antíteses e divagando sobre a produção e a leitura de textos literários, conclui que é no acesso ao sentido que se identifica a literariedade de uma obra. Esse acesso é o processo de entendimento pelo qual passamos para construir significado e, para o filósofo, esse movimento é o que confirma a literariedade. A leitura nunca é simples, só ler e entender, ela exige um esforço do leitor, um trabalho similar ao de quem escreve, uma busca pelo que há atrás das palavras ou entre as linhas, e é esse esforço, esse acesso, que diferencia textos comuns de textos poéticos, de textos literários. “O acesso é difícil”, diz Nancy, “não é uma qualidade acidental, o que quer dizer que a dificuldade faz o acesso”.³ Dessa forma, quanto mais difícil, mais presente está a literariedade.
Assim, a literatura está muito mais no fazer do que no feito, e aí o título do texto do filósofo: Fazer, a poesia. O fazer do texto literário é o próprio aspecto literário. O acesso ao sentido durante a produção do texto e durante sua leitura varia a cada consulta à obra, muda com o tempo, é flexível, indeterminável, novo e único a cada vez, jamais se repetindo, porque o aspecto literário “não tem exatamente um sentido, mas, antes, o sentido do acesso a um sentido cada vez ausente e adiado”, ou seja, “um sentido sempre por fazer”; ⁴ não é um elemento no texto, mas uma ação sobre o texto.
É porque achamos novos significados para as palavras a cada leitura que o texto é literário. Por mais que o significado se mantenha conosco depois de fechar o livro ou abandonar a tela e por mais que tenhamos em mente onde chegamos com nossas interpretações, é somente no limite entre o vazio e o entendimento que se faz a poética. A primeira vez em que o texto se constrói em nossas mentes, e como essa construção se dá de maneira diferente a cada nova tentativa é a própria poética, é o que caracteriza a literatura.
E assim voltamos ao início: o que diferencia poesia de prosa? E a resposta seria esta: o aspecto literário e, dessa forma, o acesso ao sentido. A interpretação. A construção de significado. Esse processo, esse movimento, que faz palavras tão estáticas ganharem tanto dinamismo, tanta agitação.
A leitura de poesia difere da leitura de prosa não somente pela estrutura distinta de um e outro, mas também pela própria maneira que os dois tipos de texto se configuram. O acesso ao sentido da prosa se dá por extenso, com as sentenças encadeadas e os parágrafos em sequência; quanto mais você lê, mais tem acesso ao sentido do texto e mais desencadeia sentimentos e conclusões a partir da leitura. Na poesia, é o contrário: não há extensão, o encadeamento de ideias não é feito como na prosa, os versos não precisam se ligar um ao outro e nem as palavras.
O esforço de leitura - quer dizer, as estratégias de interpretação, de entendimento e, finalmente, de acesso ao sentido, à mensagem transmitida pelas obras - em prosa e em poesia é distinto e assim os dois tipos de texto se separam não necessariamente na forma ou na quantidade de palavras, mas no ato de composição e leitura, no fazer de ambas. Poesia e prosa são diferentes porque as escrevemos diferentes. Poesia e prosa são diferentes porque as entendemos diferentes. E poderia ser de outra forma?
¹ Nancy, Jean-Luc. Fazer, a poesia. ALEA: Estudos Neolatinos, v. 15, n. 2, p. 414-22, 2013. p. 421.
² Idem, p. 413.
³ Idem, p. 417.
⁴ Idem, p. 416.
Texto publicado na edição 3 — meios e registros da revista Alcateia.
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