top of page
  • Paula Cruciol

Interpretando com os olhos

Paula Cruciol



“Uma imagem vale mais que mil palavras”.

Quantas vezes você já ouviu essa frase e quantas vezes ela lhe pareceu verdadeira?

Para escritores, acostumados com as palavras, ela pode parecer um absurdo. Dispomos de vocabulários enormes e recursos diversos para transmitir nossas mensagens, podendo combinar expressões e misturar figuras de linguagem, entre muitas outras estratégias. Para ilustradores, acostumados com imagens, ela pode parecer bastante razoável. O ponto de vista de uma cena, as cores e a iluminação, a disposição dos elementos e muitos outros detalhes da composição da imagem podem transmitir várias informações, fazendo o leitor entender o cenário, o sentimento, o enredo e todos os outros aspectos de desenvolvimento da história.

A questão, no entanto, não é colocar um contra o outro, mas nos perguntar: em que sentido uma imagem poderia valer mais que mil palavras? Em uma cena descritiva, por exemplo, uma imagem poderia poupar tempo já exibindo as representações dos objetos e compondo o cenário. Nesse sentido, uma imagem vale mais que mil palavras pela velocidade de assimilação; percebemos os componentes do cenário em uma imagem mais rápido do que lemos um parágrafo enumerando cada detalhe. Já em uma cena de suspense, por exemplo, as palavras prolongariam as descrições e dariam mais tempo para que o mistério e a tensão se consolidassem na mente do leitor. Contudo, mesmo esses dois exemplos não são absolutos. Cenários podem ser muito bem descritos por palavras e cenas de suspense podem ser muito bem construídas por imagens. A questão é ainda anterior: por que imagens deveriam ser comparadas a palavras?

Palavras e imagens — no contexto das produções artísticas, principalmente aquelas envolvendo narrativa — são instrumentos de construção e desenvolvimento de enredo, podendo ser usadas separadamente ou de modo complementar. No entanto, elas parecem diferentes demais para que possam ser usadas uma em comparação à outra e, ainda mais, ter seus valores contrapostos.

A leitura de palavras acontece por meio da assimilação do todo, da união entre as letras e os sons que as interligam, além da junção dos significados de cada grupo de palavras. Esses significados, inclusive, podem ser mais ou menos numerosos dependendo da organização da frase. Ou seja, dependendo da disposição dos termos e dos sinais de pontuação, a informação pode ser alterada. Não há decodificação de palavras ou textos porque a decodificação subentende apenas uma correspondência para cada elemento e a interpretação inviabiliza vias de mão única, há sempre possibilidade de variação interpretativa.

E como acontece a leitura de imagens?

O senso comum entende a leitura de imagens como uma decodificação: cada imagem corresponde a um significado. Os símbolos são grandes contribuintes desse entendimento, pois tendem a condensar representações específicas, de modo que os entendemos como imagens universais, cuja interpretação é invariável. Mas não é bem assim.

A interpretação de imagens é mais complexa do que a mera correspondência de significados — como tende-se a entender —, mas dificilmente conseguimos enxergar isso, dada a pouca importância atribuída à interpretação de imagens.

O que acontece é que “encontramo-nos imersos num oceano de imagens, numa cultura saturada por uma flora e uma fauna constituídas de espécies variadas de imagens”,¹ como diz Douglas Keller em seu estudo Lendo imagens criticamente. As placas de trânsito nas ruas, as propagandas em outdoors, cartazes e panfletos distribuídos pela cidade, os comerciais de televisão, as séries e filmes nas plataformas de streaming, os emojis das mensagens que enviamos todos os dias. “Desde o momento em que acordamos com rádio despertadores e ligamos a televisão com os noticiários da manhã até nossos últimos momentos de consciência, à noite, com os filmes ou programas de entrevista noturnos”,² somos bombardeados com imagens o tempo todo.

Percebemos o mundo através delas. Nossos objetivos, nossas ambições, também são chamadas de visão. As percepções do mundo nos impõem pressões diversas sobre como se comportar, como se parecer, o que dizer e o que não dizer — uma ditadura de imagens. Kellner, baseado em Neil Postman, educador, teórico e crítico cultural estadunidense, também explica a razão pela qual as imagens passaram a um espaço tão grande em nossas vidas aconteceu durante a virada do século, quando

...a sociedade ocidental deixou a cultura impressa — tipográfica — para trás e entrou numa nova ‘Era do Entretenimento’, centrada numa cultura da imagem. [...] Postman atribui essa ‘grande transformação’ primariamente à televisão que, de fato, pode ser interpretada como a máquina de imagens mais prolífica da história, gerando entre quinze e trinta imagens por minuto e, assim, milhões de imagens por dia.³

Até a ascensão da cultura do entretenimento, o texto tradicional, isto é, o texto escrito com palavras, era o grande foco. Assim, o processo de entendimento do conteúdo expresso por palavras sempre foi amplamente discutido e inclusive ensinado nas escolas em disciplinas de interpretação de texto, sendo alvo de debate na comunidade literária, jornalística, acadêmica — em diversas áreas — e em muitos outros ambientes, chegando até mesmo a desenvolver-se como uma ciência: a hermenêutica.

Mas a interpretação de imagens não teve a mesma atenção nem o mesmo destaque por ter sido taxada durante muito tempo como óbvia. O senso comum dita que imagens transmitem ideias objetivas; todos enxergam a mesma coisa quando olham para as figuras e, portanto, os significados devem ser os mesmos para quaisquer observadores. Contudo, a interpretação de imagens pode ser tão flexível quanto a de palavras e a necessidade de aprender a ler essas imagens que estão em toda parte, impactando nossas vidas em níveis variados, é enorme.

Textos visuais, imagéticos, são compostos por diversos elementos, como o enquadramento, as figuras representadas (mais ou menos abstratas), as cores, as proporções, a disposição dos elementos, a sobreposição e diversos outros, incluindo o título, que interferem no conteúdo transmitido e no propósito de produção da própria imagem. E não estamos acostumados a lidar com cada um desses elementos como uma escolha estratégica de desenvolvimento ou como uma parte essencial de sua formação.

É claro que a interpretação de palavras também demanda a análise de diversos elementos, como o vocabulário, a fonte utiliza da, a ordem dos termos, a disposição dos trechos pela página, etc.; no entanto, os aspectos visuais das palavras tendem a ser mais limitados e menos flexíveis do que os das imagens, além do fato de que a interpretação de palavras é ensinada e discutida, enquanto a interpretação de figuras, não.

A maior parte da interpretação de imagens acontece inconscientemente, no modo automático do cérebro — e nem sempre isso é bom. Reconhecer figuras e representações nos é mais natural, de modo que fazemos associações visuais com muito mais facilidade do que o fazemos com vocábulos. Essa facilidade faz que as imagens nos transmitam mensagens sem que percebamos e permitem que façamos inferências livremente, tendo um coletivo muito amplo onde apoiar nossas conclusões.

Assim, Kellner explica como o aprendizado da leitura e interpretação de imagens implica não somente em entendê-las e apreciá-las, mas analisar “tanto a forma como elas são construídas e operam em nossas vidas, quanto o conteúdo que elas comunicam em situações concretas”.⁴ Esse processo consiste em desconstruir aquilo que entendemos como óbvio, tornando-o estranho, prestando atenção “à forma como nossa linguagem, experiência e comportamento são socialmente construídos”.⁵

Finalmente, voltamos ao início: uma imagem não vale mil palavras da mesma maneira que mil palavras não valem uma imagem. São coisas diferentes. São interpretadas de maneiras diferentes. Mas precisamos falar sobre elas e elas devem ser igualmente discutidas. Vivemos em um mundo de imagens, precisamos saber interpretá-las, precisamos saber enxergar as informações que estão fora das palavras e precisamos entender o impacto que a produção de novas imagens gera. Imagens também são textos e precisamos estar preparados para suas leituras.



¹ KELLNER, Douglas. Lendo imagens criticamente: em direção a uma pedagogia pós-moderna. In: Alienígenas na sala de aula. Tomaz Tadeu da Silva (org.). Petrópolis, RJ, 1995, p. 104-131. p. 108.

² Idem, p. 108.

³ Ibidem.

⁴ Idem, p. 109. Grifos do autor.

⁵ Ibidem.



Texto publicado na edição 3 — meios e registros da revista Alcateia.

11 visualizações

Posts Relacionados

Ver tudo

Listrado

Junho

bottom of page