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  • Revista literária Alcateia

Imagens escritas em sequência

Mariana Lio



Estudo literatura e o que mais me fascina é sua capacidade de se aprofundar em si mesma. Temas diversos dentro do campo da teoria literária podem ser úteis para analisar um assunto que, de primeira vista, não tem nenhuma ligação com o inicial.

Há um tempo, tive que fazer um fichamento sobre Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia, de G. E. Lessing,¹ para a faculdade. Na época, tinha sido um texto útil para a matéria que eu cursava, ponto. Passados alguns bons meses, sem nenhuma pretensão específica, me interessei por histórias em quadrinho e me aprofundei no tema. Recentemente, li sobre construção de personagem em A personagem de ficção,² um livro que reproduziu um Boletim da FFLCH-SP de 1964.

Onde quero chegar? Ao ler o boletim de 64, é possível lembrar de Lessing por ambos distinguirem romance escrito (ou poesia, no caso do Laocoonte) de outras artes que utilizam imagem ou pessoas (peça de teatro, pintura e filme). Com essa distinção, poderíamos pensar que o romance escrito entra numa caixinha e o que utiliza de pinturas ou imagens, em outra. Mas… uma história em quadrinhos não é uma mistura dessas duas caixinhas?

Basicamente, o texto de Lessing defende que a pintura e a poesia (no texto, usada num sentido abrangente) possuem maneiras diferentes de abordar a história que querem contar. A poesia consegue expandir a ação no tempo e dedicar páginas e mais páginas para descrevê-la, falando do ambiente, do pensamento das personagens, quando fulano fez isso ou aquilo. Agora, na pintura, esse tempo está limitado à imagem reproduzida. Para que a história seja contada direito, as características dos personagens precisam estar representadas alí ao mesmo tempo que a ação e o motivo. Lessing chama esse momento específico na pintura de “momento fecundo”, o frame crucial onde há a iminência da ação ao ponto do espectador entender o antes, o durante e o depois do que está pintado.

Agora, no boletim de 64, a personagem de romance é diferenciada daquelas que podem ser visualmente representadas por causa dessa característica visual. As descrições num romance se tornam mais profundas e carregam um significado a mais no detalhamento da personagem, enquanto aquelas do teatro, da pintura e do cinema buscam outras maneiras de criar essas camadas.

O que é visual tem a vantagem de mostrar literalmente ao público o que está sendo dito e o que é escrito, de acrescentar significados a essas características através da maneira de narrá-las.

Quando, então, digo que uma HQ é a mistura dessas características, digo que ela tanto é capaz de utilizar da linguagem escrita nas narrações e diálogos (afinal, ela é um livro), quanto de apresentar visualmente os personagens e ambientes e utilizar o momento fecundo de Lessing para envolver e captar a atenção do leitor.

Em sua expressão mais simples, os quadrinhos empregam uma série de imagens repetidas e símbolos reconhecíveis. Quando são usados vezes e mais vezes para expressar ideias semelhantes, tornam-se uma linguagem [...] e é essa aplicação disciplinada que cria a “gramática” da arte sequencial.³

A disciplina a que Eisner se refere está na forma como os símbolos, quadrinhos e palavras são desenhados para que a história passe as sensações certas. A fonte das letras, se serão desenhadas junto à imagem ou não; o tamanho e a disposição dos quadrinhos, a existência deles ou não; a organização da imagem e da ação dentro de cada quadrinho ou da página toda… Tudo colabora para que o leitor se envolva com os desenhos e acompanhe as imagens da maneira certa, olhando para o quadrinho que o autor deseja que ele olhe.

Essa capacidade é permitida através das escolhas do desenhista e do roteirista, que precisam selecionar os frames certos para que a história seja realmente captada. O momento fecundo de Lessing é aquele que nos faz completar a ação representada e nos permite isso demonstrando a ação em andamento e não seu início ou fim. E, numa HQ, acontece a mesma coisa. Por mais que tenha o benefício do tempo, de se prolongar em páginas e páginas, os quadrinhos devem ser pensados para manter a coerência e o ritmo interno da leitura, além de respeitarem os prazos e tamanhos dos livros.

Lutas, por exemplo, geralmente são representadas em quadrinhos mais estreitos, que permitem uma sequência de vários dentro de uma mesma página. Isso adquire rapidez a leitura e ritmiza os golpes.

A estrutura dentro de uma história em quadrinho é muito interessante e existem diversas outras características de ritmo, ambientação e narração que são permitidas justamente pela mistura de imagem e texto escrito. Estudar essas características me fizeram lembrar dos dois textos, que analisam a escrita e reafirmam que, em literatura, existem pontes que levam a lugares completamente distintos dentro dela mesma e que sempre há alguma coisa para aprender dentro de um livro.



¹ Lessing, G. E. Laocoonte. Ou sobre as fronteiras da poesia e da pintura. Introdução, tradução e notas M. Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras/Secretaria de Estado da Cultura, 1998.

² Candido, Antonio; Rosenfeld, Anatol; Prado, Décio de Almeida; Gomes, Paulo Emílio Salles. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2014.

³ Eisner, Will. Quadrinhos e Arte Sequencial: princípios e práticas do lendário cartunista. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. p. 02.



Texto publicado na edição 3 — meios e registros da revista Alcateia.

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