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Revista literária Alcateia

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Vinícius E. Russi

ilustração de Mariana Lio



No japonês, o ideograma, ou kanji, 間 gira em torno da ideia de intervalo, de espaçamento. Ele é formado por outros dois kanjis: 日, que tem a noção de dia ou de Sol, e 門, que representa um portão; juntos eles transmitem a ideia da luz do Sol passando por entre as frestas de um portão, mostrando esse ínterim espacial. No dia a dia, há vários significados atribuídos a ele. Por exemplo, se for lido “aida”, ele significa pura e simplesmente a preposição “entre”, concebida tanto temporal quanto espacialmente, “há uma caneta entre o cachorro e o gato”. Se for lido “kan”, ele tem uma ideia de “duração”, dessa vez apenas temporalmente, “eu dormi por oito horas”. Mas neste artigo pretendo falar um pouco sobre outro conceito que leva o kanji 間, e, dessa vez (e ao longo de todo o texto), ele assume a leitura “ma”.

O conceito de 間 é de difícil tradução, ou mesmo definição, já que os próprios estudiosos japoneses não têm um consenso sobre como descrever 間 em palavras. Em sua tese de doutorado, Michiko Okano, uma das principais pesquisadoras brasileiras de 間, faz uma extensa investigação sobre o conceito e menciona as seguintes tentativas de definição: o vazio, a ausência, o silêncio, a não-ação, um espaço de ressonância entre duas partes. Alguns pesquisadores ainda afirmam que “Ma não possui explicação lógica e que ele é Ma justamente porque não possui essa lógica. E quando se força, Ma distancia-se da sua essência”.¹ Assim, podemos dizer que é um conceito mais facilmente manifestado e experienciado do que definido. Então chega de definições.

Ma é conhecimento adquirido naturalmente, herança cultural de um povo, e assim, um senso comum enraizado na vida cotidiana”.² Encontramos 間 das mais variadas formas na sociedade japonesa, seja na arquitetura, pintura, estética, música, dança, teatro, literatura ou cinema. Espacialmente falando, conseguimos ver 間 como um entre-espaço. Na arquitetura, por exemplo, Okano explica que, ao entrarmos em um templo xintoísta, sempre haverá um caminho, um entre-espaço, entre o portal (torii) e a entrada do templo propriamente dito. Esse intervalo pode ter diferentes extensões, desde um curto caminho de pedra, como se fosse a passagem entre a rua e uma casa, até uma longa trilha que pode atravessar rios e bosques. E é uma expressão de 間. À primeira vista, pode representar um percurso vazio de sentido, mas é uma passagem necessária entre a área profana e a divina, onde os passageiros vão refinar os sentidos e entrar em contato consigo mesmos.

Na pintura e no desenho, 間 novamente se manifesta nos espaços vazios, que são muito bem explorados pela arte japonesa. Podemos citar Tohaku Hasegawa, que, em sua arte, considerada simples, integra de forma primordial o 間. Nas suas pinturas, é sempre o vazio que atrai o meu olhar, parece que Hasegawa pintou o nada por cima de um desenho, e não o contrário, como geralmente acontece. Se imaginarmos uma pintura de uma casa, por exemplo, dificilmente vamos reparar na importância que os espaços vazios possuem para a composição do desenho. Mas eles estão lá. E são igualmente necessários para a formação e delimitação do objeto casa. É através da união entre espaços vazios e espaços preenchidos que nossos olhos percebem o todo.

Metade da ilustração colorida, metade em branco. A metade colorida tem várias sombras de pena e uma pena que se destaca,
ilustração de Mariana Lio

O 間 espacial é assim. É o entre-espaço que forma uma divisão para criar conexão e diálogo entre os elementos que ali coexistem. Um espaço que une.

Na mesma essência, porém por outras perspectivas, o 間 temporal age de forma não tão visível. Na música, por exemplo, ele aparece em cada pausa de uma melodia, em cada momento em que os músculos tencionam, ou relaxam, a fim de produzir um único elemento: o silêncio. Tão essenciais quanto os sons, os silêncios também são metodicamente cronometrados e cuidadosamente inseridos em uma música; conjuntamente, silêncio e som criam a harmonia, o diálogo, a interação que permite a composição da obra.

No cinema, a noção de 間 me leva diretamente para um dos meus filmes favoritos: o querido e aconchegante A viagem de Chihiro, de Hayao Miyazaki. Como é um conceito inserido na expressão cultural do país como um todo, várias animações japonesas fazem uso do 間, mas há de serem ressaltadas as do Studio Ghibli, que são experts na cena em que nada acontece, em que um personagem está sentado num matinho, olhando para as montanhas ao longe ou tomando chá ou calmamente esperando algo, enfim, cenas “vazias”. No caso de A viagem de Chihiro, há algumas cenas que poderiam ser citadas, mas a que mais me marcou quando criança e que mais traz consigo essa sensação de ausência é a cena do trem, em que Chihiro e Sem Rosto embarcam em um trem que percorre trilhos alagados a fim de salvar Haku.

A cena do trem dá um intervalo de contemplação para o telespectador, calmamente nos deixamos imergir no universo do filme, de uma maneira diferente por meio da qual uma cena de ação ou de terror nos imerge. É como se nós mesmos estivéssemos dentro do trem e só nos resta observar o imenso oceano passando enquanto a locomotiva percorre as várias estações e os passageiros descem um por um. A ausência faz com que a gente consiga digerir tudo o que assistimos até aquele ponto e repousar a mente. E, mais do que isso, essa ausência permite aos próprios personagens uma pausa, uma cena em que não acontece nada, em que eles podem processar tudo pelo que passaram, em que podem se reconectar com quem são, passados todos os eventos caóticos que levaram àquele momento.

Dessa forma, o 間 nos ensina a experimentar mais ausências na nossa vida, já que tentamos desesperadamente a todo momento tapar todas as lacunas do tempo, afinal, o que nos é ensinado é que qualquer lacuna é ruim, é negativa, lacunas não produzem nada. Quem nunca se pegou tateando cegamente pelo celular enquanto esperava alguma coisa, uma consulta, um ônibus, uma aula começar; fingindo para a sociedade que tinha algo para fazer, preenchendo todas as possíveis pausas, fugindo do silêncio e da ausência, fugindo da cena em que nada acontece.





Uma pausa.





Cenas assim causam uma fissura no nosso tempo, e por essa fissura tudo pode passar, como a luz do Sol que atravessa as frestas de um portão. O que é uma fresta senão um entre-espaço, um vazio que potencializa a manifestação do Sol? Principalmente nas pequenas ausências que nos permitimos no dia a dia é que enxergamos o sentido, entendemos o porquê e vivemos o momento mais inimaginável de nossas vidas: o presente. Esse mesmo! Que de tão distante e tão perto de nós não pode ser sonhado, nem lembrado, só pode ser vivido.

Me segurei muito para não acabar o artigo com aquelas desgastadas frases motivacionais de “viva o presente!”, “só temos o hoje e o agora!”, “dê tempo ao tempo”, mas é para essa conclusão que o complexo 間 me trouxe hoje, e é aqui que deixo vocês. Contemplem o essencial restante vazio da página.








¹ OKANO, Michiko. Ma: Entre-espaço da comunicação no Japão. Um estudo acerca dos diálogos entre o Oriente e o Ocidente. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007.

²Ibid., p. 17.



Texto publicado na edição 7 — tempo da revista Alcateia.

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