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Claus Corbett

Criar e jogar em mundos imaginários

Claus A. Corbett

ilustração de Mariana Lio



Todo jogo é capaz, a qualquer momento, de absorver inteiramente o jogador”.¹ Assim disse Huizinga em seu livro Homo Ludens. Nesse livro, o autor busca reunir características do que entende por jogo e relacioná-las a diversos aspectos da vida humana, argumentando que o jogo - o lúdico - faz parte de tudo que fazemos enquanto sociedade. Dentre essas características, o autor elabora que o ato de jogar exige uma “supressão temporária do mundo habitual”.²

A ideia de suprimir o mundo comum para se habitar um mundo imaginário não é novidade para leitores de romances e quadrinhos ou para espectadores de obras cinematográficas; há, inclusive, uma discussão muito viva acerca da ideia de suspensão de descrença em todos esses meios. Uma das questões comumente levantadas é o quanto a frase suspensão de descrença realmente se aplica, por ser talvez genérica demais ou simplista demais, mas “geralmente se concorda que o efeito que ela descreve existe e este nunca é negado completamente”.³

Mesmo havendo uma aparente convergência de ideias, é preciso considerar que estes dois conceitos não surgiram de uma mesma linha - ou até de um mesmo objeto de estudo. Enquanto a noção de suspensão de descrença focava, inicialmente, no ato da leitura apenas, o foco de Huizinga é no jogo, um meio em que por vezes a agência dos participantes é maior. Como considerar esse fenômeno, independente de seu nome, em um meio que apresenta qualidades tanto do narrativo quanto do lúdico?

O gamer não é um leitor, mas também não é, stricto sensu, um jogador, especialmente em obras que focam em um conteúdo narrativo. “A posição do gamer se distingue do leitor ou da audiência […] em vários aspectos. Primeiramente, qualquer forma de passividade não é uma opção para o jogador, seu envolvimento não é negociável”.⁴ Por outro lado, diferente do jogador em um esporte coletivo, por exemplo, o gamer também é agente na criação de uma narrativa - ou, ao menos, na sua continuidade.

Para que o jogo continue e se desenvolva, eu preciso me envolver. Isso não quer dizer apenas apertar seus botões, mas tomar decisões, agir sobre elas, aceitar suas consequências. O jogo oferece a escolha e a oportunidade de deixarmos de lado um mundo concreto e entrar em suas narrativas de forma mais participativa. Por isso, o mundo que habito quando jogo é diferente, mesmo que para todos os efeitos seja o mesmo universo fictício dos filmes ou livros, “mas se conecta com ele e não é algo menor, apenas uma experiência diferente que pode pressionar em outras partes de mim mesmo que se tornam receptivas a uma suspensão de descrença similar”.⁵

As regras são outras, a liberdade é maior e ao mesmo tempo menor, pois um jogo pode dar ao gamer a agência de estar diretamente no papel do protagonista, mas os criadores detêm também um poder às vezes maior do que o do escritor, dado que o meio de desenvolvimento da história não é a imaginação, mas um ambiente de certa forma mais concreto.

Nos games, as ‘sombras da imaginação’ do desenvolvedor, suas regras e personagens e métodos de interação não são tão insubstanciais, elas podem impor seus sentidos, e impô-los com força, através da equivalência de uma resposta narrativa, muitas vezes a morte, para a ação no jogo. Perceber que gamers estão nesta posição subjugada antes mesmo de ter a opção de suspender sua descrença contradiz a figura do jogador poderoso e com agência, mostrando que em comparação com a leitura e a imaginação suas opções são mais limitadas do que o normal.⁶

Existem, é claro, diversos tipos de games e, portanto, variações nessa fórmula e no nível de liberdade dos gamers. No entanto, como o meio exige um produto “finalizado” antes de seu aproveitamento, não há como se prover liberdade total. Nesse ponto, um outro tipo de jogo pode se provar muito mais libertador por se passar quase totalmente no reino da imaginação.

Os jogos de RPG de mesa trazem sistemas de regras (e ambientações) que permitem aos participantes emular e lidar com virtualmente qualquer possibilidade de situação, ação ou interesse. O nível de liberdade dos jogadores é limitado apenas pela figura do condutor da sessão, chamado por vezes de mestre do jogo ou narrador, dependendo do jogo, dado que a regra de ouro em qualquer sistema é a maleabilidade. Nesse caso, lidamos também com um esforço de criação narrativa conjunta e é preciso que todos os envolvidos aceitem habitar um mundo fictício até que a sessão se encerre.

Há aí diversas armadilhas, como autoritarismo do narrador ou o apego às regras rígidas por parte deste ou de um dos jogadores ou até mesmo a atitude de competitividade e a busca pelo “ganhar a todo custo” - apesar de, no RPG de mesa, ganhar ser um termo que dificilmente se aplicaria da forma como o entendemos. Nisso, notamos a similaridade com outros meios no sentido de que há um ato voluntário de se entregar ao mundo imaginário.

Uma carta ilustrada por uma pessoa segurando um controle de videogame (cujo formato lembra uma borboleta). No plano de fundo, várias borboletas de diferentes tamanhos voam em diferentes direções.
ilustração de Mariana Lio

No entanto, essa flexibilidade de regras que o RPG de mesa permite o transforma em uma atividade que vai além do simples seguir regras e rolar dados. Em verdade, esse jogar se aproxima muito mais do faz-de-conta infantil e, com a atitude correta, pode extrapolar a conexão comumente feita de “jogos = estatégia e técnica” para nos apresentar o lúdico em sua faceta mais livre. Em verdade, reza a lenda que o jogo considerado como o pai dos RPGs modernos, Dungeons & Dragons, surgiu em um momento em que as regras rígidas dos jogos de estratégia militar foram quebradas.

Segundo se conta, três amigos jogavam um jogo de em que dois deles tentavam invadir a fortaleza de outro com seus exércitos, mas falhavam repetidas vezes. Um dos jogadores invasores, perdendo a paciência, afirmou “Mas um dos homens de meu batalhão escapou dessa batalha e conseguiu entrar nas masmorras (dungeons) da sua fortaleza” e o defensor respondeu “Ok, então semana que vem vamos jogar as aventuras desse soldado dentro da minha fortaleza”. É difícil afirmar que essa história seja completamente a verdade, mas acredito que não é na veracidade que jaz sua importância.

Como uma fábula, ela traz conhecimento e emoção em seu interior e representa também um jogar com a verdade e a história do RPG. O conhecimento que ela traz é extremamente útil por ao mesmo tempo ser um conselho a todos os condutores dos jogos (“não crie barreiras aos jogadores, crie possibilidades”) e jogadores (“não se prenda ao que é apresentado como possível, seja criativo em suas empreitadas”) e uma forma de se expor uma máxima raramente dita (“estamos aqui para criar histórias, seja por onde for que elas sigam”).

Interessante notar, também, que surgiram com o tempo diversos outros sistemas de RPG, muitos deles com cenários e ideias próprios, e suas regras raramente se equivalem. As estatísticas usadas para definir os personagens não são as mesmas e a complexidade das regras varia intensamente. Nos primórdios do RPG no Brasil, haviam três grandes sistemas no mercado: D&D, GURPS e World of Darkness. Seria impossível (mesmo hoje em dia) comparar as fichas que apresentam as capacidades de personagens dos três sem alguma ginástica mental - ou mais ainda a lógica interna de cada um.

Enquanto D&D reflete aquilo que entendemos como “fantasia padrão”, com suas classes, raças e magias canônicas e regras focadas na execução desses arquétipos, GURPS sempre foi um sistema que prega sua jogabilidade em qualquer cenário, em qualquer história - e trazia, em sua segunda edição, regras tão complexas a ponto de virarem piada entre os jogadores, como a famosa regra para se calcular o tempo de cavar um buraco. Já WoD é uma série de livros que traz um mundo em que monstros e seres sobrenaturais caminham entre os humanos, escondidos pelo véu da sanidade e do segredo. Suas regras são um reflexo disso e, apesar de em cada livro se apresentar um tipo de personagem diferente (vampiros, lobisomens, magos, fadas e até mesmo caçadores do sobrenatural), todos são compatíveis uns com os outros (não necessariamente como aliados, mas em nível de poder e estrutura de fichas).

Hoje em dia, existem muitos outros RPGs, com seus cenários e possibilidades. Alguns, como Blades in the Dark, em que os jogadores interpretam criminosos em busca de sobrevivência em um cenário sombrio, expõem uma faceta muito comum das histórias de RPG, o “entre aventuras”, com regras específicas do que os personagens podem fazer nesse meio tempo para se recuperar. Isso, de certa forma, remonta às origens do próprio D&D, que antes era um jogo de exploração de masmorras e que contabilizava tempos de viagem e outras coisas, mas não trazia dentro do jogo os acontecimentos “mundanos” desses personagens.

No entanto, independentemente de como isso é feito - seja através de planejamento, descrição curta ou role-playing de todos os fatos - a possibilidade de se imaginar, interpretar e viver a vida de seus personagens além de suas aventuras fantásticas faz parte desse jogar, desse criar. Nós criamos histórias que se conectam uma à outra sem intervalos, expandimos universos, vivenciamos vidas inteiras e aprendemos com isso a negociar perdas, vitórias, amores, companheirismo, desafios e possibilidades. Possibilidades. É sobre isso, no final. Um multiverso de possibilidades em que abandonamos temporariamente nossas vidas normais para criar sem limitações, sem repressões, sem medo. Pulamos de cabeça em mundos ficcionais e esquecemos que há o impossível.

A teoria de suspensão de descrença, como já afirmado, é amplamente discutida, especialmente na área da literatura, onde surgiu há séculos, mas entendemos que algo acontece e nos permitimos, nos mais diferentes momentos e através dos mais diferentes meios, nos desconectarmos do dia a dia em busca de algo diferente, de uma outra realidade que pode nos oferecer catarse e aconchego. Não caberia, aqui, oferecer uma definição ou nomenclatura com pretensão de resolver este dilema, mas “a frase inteira, ‘suspensão voluntária e momentânea da descrença’, parece ser o ponto mais apropriado para partirmos em busca de uma definição mais completa”.⁷



¹ Huizinga, Johan. Homo Ludens (Estudos). São Paulo: Perspectiva, 2019. Edição do Kindle. p. 28.

² Ibid., p. 34.

³ Brown, Douglas William. The suspension of disbelief in videogames. 2012. 251 f. Tese (Doctor in Philosophy) – Escola de Artes, Universidade de Brunel. p. 63.

Ibid., p. 73.

Ibid., p. 231.

Ibid., p. 224.

⁷Ibid.,p. 63.



Texto publicado na edição 6 — ludicidade da revista Alcateia.

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