Paula Cruciol
ilustração de Mariana Lio
Se nossas vidas fossem livros, eles seriam escritos de momentos que não existem, sensações que já não sentimos. Histórias. O passado é um tempo inexistente e inalcançável, acessível apenas pela memória. E não seria isso literatura? Fatos reais que já não estão na realidade; ficção. Verdades que se camuflam de mentiras, passados e futuros que se apresentam como presentes.
O tempo real e o tempo literário se misturam entre páginas de texto, mas o que é afinal o tempo real e o tempo literário? O que é o tempo em uma obra de literatura? O que é o tempo? O que é a literatura?
Já disseram que a leitura é uma forma de viagem no tempo, então talvez essa seja uma resposta: nos livros, o tempo é uma viagem. Para frente e para trás na linha cronológica, uma viagem mais acelerada ou mais retardada, mas definitivamente uma viagem que nos faz perder noção das horas “reais” enquanto viramos as páginas de papel, as páginas virtuais, mantendo os olhos abertos durante as noites que viramos acordados, vivendo anos inteiros, décadas, eras, em poucos minutos.
O tempo nos livros é uma viagem, mas, fora deles, não é algo tão flexível e infinito. Uma pessoa só pode ler uma quantidade limitada de livros na vida. A produção literária é constante, as bibliotecas se ampliam cada vez mais com novas histórias, coleções, traduções em diversas línguas, textos começando e terminando a todo momento num ritmo irrefreável. Impossível de acompanhar. Estamos presos no tempo, limitados pela sua existência e condenados a uma seleção de obras: o que você vai ler, com que livros vai ocupar seu tempo?
Responder a essa pergunta é também responder a outra: quais livros você não vai ler? Quais vai ignorar? Deixar de lado?
Se o tempo não fosse finito, não ficaríamos tão preocupados com essa seleção. Mas ele é. O tempo é limitado. E mais ainda quando consideramos que nosso tempo não pode ser inteiramente ocupado por leitura. Mas, apesar de presos a uma quantidade fechada de obras, somos livres para escolher a quais delas nos dedicar. Certo? Há liberdade na construção da nossa biblioteca intelectual? Roland Barthes, sociólogo, semiólogo e filósofo francês diz que não.
A vida em sociedade, assim como o universo e o tempo-espaço, é permeada por regras — talvez não tão rígidas e complexas quanto às do universo (ou talvez tanto quanto), mas ainda assim regras, normas, padrões. Às vezes mais e às vezes menos perceptíveis, às vezes mais e às vezes menos opressores. Essa organização, fruto de anos e anos de desenvolvimento humano, cheia de influências e influenciadores, efeitos e consequências de ações ao mesmo tempo próximas e distantes de nós, de uma forma ou outra, conscientemente ou não, interfere na nossa liberdade.
Por que gostamos do que gostamos? Por que consumimos o que consumimos? E, aplicada ao universo literário: por que lemos o que lemos? Por que buscamos alguns títulos enquanto esquecemos outros? Onde está a liberdade das nossas escolhas literárias?
Que existem pressões externas agindo sobre diversas áreas de nossas vidas nós já sabemos, mas o foco de Barthes é em relação às normas dentro do universo literário. Em seu artigo Da leitura, publicado em O rumor da língua, ele explica como funcionam as leis que regem o próprio ato de ler, “ou melhor, se assim se pode dizer, o ato de ter lido”.¹
Cada grupo tem seu próprio cânone. Não se pode falar desse assunto sem ter lido esse livro. Não se pode dizer apreciador desse gênero sem ter lido essa obra. Não se pode mencionar essa figura autoral sem mencionar esse texto específico. Você certamente consegue pensar em alguns exemplos.
A ausência da liberdade de leitura, diz o teórico, reside nessa lei, que cria uma espécie de iniciação ao público leitor, limitando suas escolhas de repertório literário e ditando seu caminho pelo universo textual canônico — que é diferente para cada grupo. O que Barthes defende, por outro lado, é que a liberdade de leitura deveria ser também a liberdade de não ler, mas em sociedade, infelizmente, essa liberdade não existe.
Isso acontece porque cada grupo define sua maneira de entender a sociedade, de tecer suas opiniões e fazer suas críticas, de iniciar revoluções e provocar mudanças e, dessa maneira, de selecionar quais são os livros aos quais os membros devem se dedicar e quais são as obras que devem ocupar seu tempo. E, como o tempo é limitado, esse adiantamento na seleção de obras literárias acaba servindo perfeitamente. Se o tempo fosse infinito, não ficaríamos tão preocupados com essa seleção. Mas ele é. E assim são construídos os cânones.
Cânone, por si só, compreende “o corpo de obras (e seus autores) social e institucionalmente consideradas ‘grandes’, ‘geniais’, perenes, comunicando valores humanos essenciais, por isso dignas de serem estudadas e transmitidas de geração em geração”.² A própria definição dita a limitação, a falta de liberdade: somente as obras institucionalmente “grandes” e “geniais” podem compor a seleção e somente elas valem o tempo de leitura, compensam o investimento do público. Mas que instituição determinou o parâmetro de grandeza de uma obra? E que instituição determinou que todas as outras fora da seleção não comunicavam “valores humanos essenciais” ou não eram “dignas de serem estudadas e transmitidas de geração em geração”?
Historicamente, o prestígio da mulher, por exemplo, no cenário literário é muito recente. O cânone, dessa forma, majoritariamente a exclui. Aos poucos, a academia resgata histórias e enaltece textos femininos, contribuindo lentamente para uma equiparação de gênero no arquivo literário, mas, de modo geral, não conhecemos sequer seus nomes, quem dirá suas obras. Dos homens, por outro lado, nós sabemos nome, sobrenome e ao menos um título de sua autoria. Sabemos onde nasceram, com o que trabalharam, como viveram e como morreram. E por quê? Por que fomos apresentados a eles, mas não às mulheres? E quanto a todos os autores contemporâneos amplamente conhecidos e debatidos, cujo reconhecimento oficial, canônico, ainda não aconteceu? E quanto às obras produzidas recentemente?
O cânone é composto, em sua maior parte, por textos produzidos há muitos anos por homens que contaram histórias salpicadas de valores ultrapassados e incompatíveis com a atualidade, com críticas já pouco provocantes ou revolucionárias em meio a enredos distantes da realidade contemporânea. Seu mérito não deve diminuir e sua genialidade não é questionada, mas onde estão todas as outras obras produzidas ao longo dos anos e por que elas não podem ser também geniais? Onde estão todas as obras atuais dignas de reconhecimento e estudo?
Douglas Kellner, teórico crítico, em seu estudo Lendo imagens criticamente, diz que “embora a alta cultura tradicional forneça prazeres e atrações singulares, sua glorificação e canonização também servem como instrumento de exclusão, marginalização e dominação”,³ ou seja, a construção do cânone, ainda que apresente grandes obras dignas de destaque, também é parte de uma estrutura elitista e opressora que marginaliza e ignora todo o restante do arquivo literário.
A problemática da elaboração e, principalmente, da imutabilidade do cânone está na proposta de legado universal. O cânone é uma construção ideológica fixa que pretende contribuir para o futuro do público leitor, mas é pautada num passado que se recusa a se atualizar e, assim, mantém sendo transmitidas de geração em geração histórias racistas, sexistas, controversas e contestáveis. E esse preciosismo é inabalado em prol da manutenção de um reconhecimento histórico dos textos.
Mas textos envelhecem e, junto com eles, as histórias.
Assim, a renovação do cânone tem o mesmo problema de sua formação: o tempo.
Nós nascemos e morremos e nesse intervalo, temos — ainda que limitado — tempo para ler. Textos também nascem e morrem e nesse entremeio podem ou não ser reconhecidos. A instituição literária crítica não nasce e nem morre, parece parada no tempo; contudo, interfere nas escolhas do público e, antes disso, nas suas alternativas. Somente alguns textos são certificados como “dignos de estudo” e, dentre eles, somente alguns têm seu valor atestado. A seleção do que compõe o cânone é feita pela academia e sustentada por um sistema de resignação entre ela e o público: se a instituição literária diz, está dito. Mas o público também tem voz e, apesar de todas as influências e estímulos, tem liberdade.
Então o que você vai ler? Qual será a sua escolha? E o que ela dirá além dela mesma? Qualquer que seja a resposta, não tenha medo de perder tempo.
¹ Barthes, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 34-35.
² Cânone. In: E-Dicionário de Termos Literários de Carlos Ceia. Disponível em: https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/canone/. Acesso em: 12 set 2020.
³ Kellner, Douglas. Lendo imagens criticamente: em direção a uma pedagogia pós-moderna. In: Alienígenas na sala de aula. Silva, Tomaz Tadeu da (org.). Petrópolis: Editora Vozes, 1995. p. 106.
Texto publicado na edição 4 — vida de artista da revista Alcateia.
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