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  • Revista literária Alcateia

Até onde jogo é jogo?

Mariana Lio



Vou confessar para vocês: o tema dessa edição me trouxe mais perguntas do que qualquer outra coisa. O que é um jogo, se é uma forma de arte ou não, existe diferença entre jogo e narrativa interativa… Mas uma em específico chamou minha atenção por ter, de certo modo, se aproximado mais da minha experiência com o tema: o conceito “jogo” existe até qual ponto? Qual a barreira que mantém um jogo sendo jogo?

Como comentei, minha aproximação com essa questão foi por conta de produções como o filme Jogador Nº1, de Spielberg, toda a saga Jogos Mortais e uma série que chamou minha atenção há um tempo, Sword Art Online, de Reki Kawahara e abec.

O filme Jogador Nº1, de Steven Spielberg, lançado em 2018, foi baseado no livro de Ernest Cline com o mesmo nome. É uma distopia onde o jogo de realidade virtual OASIS é a forma de entretenimento mais consumida da humanidade. Quando o dono do videogame, James Halliday, falece, uma competição para decidir quem será o próximo dono é lançada. Além da competição dentro do jogo, o filme mostra a intervenção fora da realidade virtual causada pelo CEO Nolan Sorrento, que caça e tenta impedir que o protagonista, Wade Watts, ganhe o jogo.

Jogos Mortais é uma saga que provavelmente não precisa de explicações, tendo oito filmes já lançados e um nono que estreará esse ano. Com seus jogos de vida e morte, os jogadores precisam tomar decisões terríveis para escaparem das armadilhas e salvarem suas vidas. O propósito original dos jogos era ensinar os jogadores a valorizarem a vida não só deles, mas de todos. Depois da morte de Jigsaw, os jogos ganham outro orquestrador, porém dessa vez as armadilhas passam a não ter mais saída e o princípio de que os jogadores se salvariam foi perdido.

Agora, Sword Art Online é uma série de mangás que também trabalha com realidade virtual. A história acontece no ano de 2022, quando um jogo com o mesmo nome foi lançado com um capacete de realidade virtual que estimula os cinco sentidos do jogador, trazendo a experiência do jogo para muito próxima da realidade. Após o lançamento e diversas pessoas entrarem no SAO, os jogadores recebem a informação de que não poderiam mais sair do jogo até ganhá-lo. O problema era que se os jogadores morressem no jogo, sofreriam as mesmas consequências na vida real. A mesma coisa aconteceria para aqueles que tentassem retirar os capacetes sem antes terminar o desafio.

Uma carta ilustrada por uma pessoa na frente de escadas que sobem e descem em todas as direções. Na parte inferior da carta, lê-se labirinto.
ilustração de Mariana Lio

As três produções conversam com as minhas perguntas porque trabalham com o transbordamento do círculo mágico para a realidade, quebrando com certas “regras” que o conceito de jogo elaborado por Johan Huizinga trabalha.

Primeiro, “por círculo mágico, tomamos como base a conceituação de Johan Huizinga a partir da premissa de que os jogos possuem um universo espacial e temporal próprio que delimita as fronteiras do mundo do jogo e do mundo comum ou o resto do mundo”.¹ Para que esse universo seja criado, Roger Caillois apresenta que para todo jogo deve haver um acordo do que é ou não permitido dentro daquele universo, o que seria possível de ser feito dentro do círculo mágico e o que não seria.

Além disso, ele propõe que um jogo deve ser uma atividade livre e voluntária, com duração específica e regras definidas que vigoram dentro daquele universo sem serem alteradas por leis externas. Deve ser fictícia, já que os jogadores estão localizados dentro do círculo mágico, não gerar lucros novos e, por fim, não ter um resultado pré-determinado.

Dessa forma, Jogos Mortais, SAO e Jogador Nº1 remeteriam ao transbordamento desse universo criado especificamente para o jogo proposto. De acordo com as predefinições básicas de Huizinga e Caillois, poderíamos pensar que eles alteram alguns conceitos considerados básicos.

Na saga de nove filmes, o que mais me chama atenção é a voluntariedade dos jogadores e, depois, a imprevisibilidade do final. Em primeiro lugar, nenhuma pessoa que caiu na armadilha de Jigsaw queria estar ali, por isso o jogo proposto não foi voluntário. Porém, as outras características, como conjunto de regras básicas, a suspensão das leis externas ao jogo e a possibilidade de vencer foram mantidas. Essa última característica, a imprevisibilidade, foi trabalhada no filme. Comentei que após a mudança de orquestrador, os jogos passaram a ser letais, sem permitirem que o jogador, a vítima, tenha outra possibilidade senão perder.

Já no universo de realidade virtual de SAO, as questões levantadas são outras. Por conta da duração do jogo se estender indeterminadamente, só permitindo que o jogador pare de jogar apenas quando ganha o jogo, as pessoas dentro da realidade virtual passaram a encarar o universo criado dentro do círculo mágico como sua nova realidade. Seus corpos reais precisavam ser mantidos por máquinas enquanto os sentidos sobreviviam dentro do jogo. Com a determinação do tempo quebrada, o incentivo ao jogo foi perdido.

Agora, em Jogador Nº1, quando Sorrento tenta impedir que Watts ganhe o jogo e o persegue fora da realidade virtual, houve um rompimento do círculo mágico por parte do CEO. O jogo não estaria mais acontecendo apenas dentro do videogame, mas também fora, com outras leis. Poderíamos considerar que outro jogo foi estabelecido na vida real? Acredito que não por conta da ficcionalidade, do conjunto de regras que não foi estabelecido por Sorrento e pela voluntariedade dos supostos jogadores, por mais que tenhamos visto aqui que voluntariedade pode não ter um elo muito forte com o jogo.

Tendo levantado a questão da temporalidade, da voluntariedade, da imprevisibilidade, do jogo fora do jogo, o ponto que me pareceu mais forte dentro dos exemplos foi a imprevisibilidade do resultado e dos acontecimentos durante a partida. As outras regras podem ser alteradas e omitidas, quando pensamos que o envolvimento do jogador é o que faz o jogo.

A involuntariedade do jogador que precisa salvar sua vida da armadilha de Jigsaw se envolve com o universo proposto por toda a situação de submissão do jogador e controle que o dono do jogo impõe, além das consequências drásticas instauradas pelas regras. A temporalidade indeterminada também foi ultrapassada por conta também das consequências drásticas de se viver dentro da realidade virtual. O último, o jogo fora do jogo é um evento externo, que traz consequências diretas para o jogador, mas não acontece dentro do círculo mágico.

Agora, quando a imprevisibilidade do jogo é quebrada e, assim como aconteceu com a segunda onda dos Jogos Mortais, o final já está escrito, me parece que há uma quebra dentro do conceito dos jogos que traz alguma perda de sentido essencial. Se o final já está dito, se o caminho já está traçado, não estamos mais em um ambiente com possibilidades que permitem o envolvimento do jogador na narrativa. Não há luta pela vida, não há tentativas, não há jogo.

No entanto, depois de mais de duas páginas de texto, ainda me pergunto: essas alterações trazidas nos exemplos seriam suficientes para extravasar o círculo mágico? Ou seriam apenas consequências delimitadas pelas próprias regras do jogo? Se uma das regras internas do círculo mágico permitir o transbordamento? E se a surpresa ao ser convocado para o jogo for, também, uma regra? A imprevisibilidade é mesmo uma questão essencial?



¹Oliveira,Thaiane Moreira de. Atravessando o círculo mágico em jogos pervasivos: performance e presença em espaços heterotópicos. Estudios sobre las Culturas Contemporáneas, v. XXI, n. 42, 2015, pp. 65-84. Disponível em: https://www.redalyc.org/jatsRepo/316/31642649004/index.html. Acesso em: 10 fev. 2021.



Texto publicado na edição 6 — ludicidade da revista Alcateia.

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