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  • Revista literária Alcateia

Apenas um gibi?

Mariana Lio



Desenhos são uma forma de texto. E o texto, uma forma de desenho. As letras são imagens e podem representar diferentes sentimentos ou até reforçar alguma mensagem dependendo de como são escritas. Ao mesmo tempo, a gramática presente dentro de um texto pode ser transferida para uma imagem e tanto um sujeito quanto um predicado e um objeto direto podem ser desenhados e ocupar a mesma posição dentro de uma narrativa imagética. Os desenhos precisam ser escolhidos com cuidado e devem estar bem organizados na página a ponto de o leitor entender quem fez a ação, quem recebeu e o que aconteceu.

Quando levanto a bola dessas narrativas, gostaria de chamar atenção para uma forma de texto que não é tão analisada nem dentro dos estudos literários (como uma prosa ou uma poesia são) e nem do cinema, mas que é, no final das contas, uma mistura de texto e filme: as histórias em quadrinhos. Elas possuem uma organização interna complexa e carregam características tanto de um texto escrito quanto de um filme ou uma ilustração. Claro, todos contam histórias, mas existe muito mais coisa dentro dos gibis que compramos numa banquinha de jornal.

Em Desvendando Quadrinhos, Scott McCloud, quadrinista e teórico de quadrinhos mais conhecido pela sua sequência de livros sobre o tema, Desvendando Quadrinhos (1993) e Reinventando Quadrinhos (2000), aponta o que chamou de “5 escolhas”, que é um levantamento básico tanto da estrutura quanto do que será desenhado e do que será escrito dentro de uma história em quadrinhos: o momento, o enquadramento, as imagens, as palavras e o fluxo.

Cada ponto precisa ser previamente pensado pelo desenhista e pelo roteirista das HQs, pois permite a leitura, determina o ritmo da narrativa, o sentimento do leitor e o nível de envolvimento na história e no cenário. Eles também guiam o olho do leitor para os lugares certos, seja no sentido de leitura ou não. Por que nós lemos as imagens das HQs em sequência e não a página toda de uma vez como uma ilustração?

Aqui está uma pequena narrativa que criei em que podemos analisar cada escolha:

Primeiro quadrinho: as patas de um cachorro cortam comida em um prato e o cachorro diz: o jantar está ótimo, querida. Segundo quadrinho: o cachorro diz: o sabor é familiar, mas não consigo decifrar. Terceiro quadrinho: o cachorro pergunta: é carne de quê? A imagem é de uma cabeça de cachorro morto em um prato. A esposa responde: sua. Quarto quadrinho: a mesa da família de cachorros está posta com uma cabeça de cachorro morto no centro. Quinto quadrinho: um ponto de exclamação e um olho arregalado. O cachorro pensa: Ufa, era só um pesadelo, estou na cama ainda! Sexto quadrinho: o cachorro está deitado em cima da mesa de jantar. A esposa diz "oh, querido".
História em quadrinhos de Mariana Lio

Uma pequena narrativa sobre um cachorro encrencado (ou não).

A primeira escolha de McCloud que vou comentar é o momento. Se pensarmos nos frames de um filme, por exemplo, um mesmo movimento tem vários quadros seguidos. Para uma HQ, nós precisamos escolher o frame que melhor representa a ação como um todo, sem precisar de muitos quadros para dizer que o cachorro está jantando:

O primeiro e o segundo quadrinhos da tirinha, que mostram o cachorro comendo a comida.
ilustração de Mariana Lio

No quadro 4, percebemos o que está acontecendo e temos a vista total da situação. Por conta disso, seu tamanho e unidade são necessários: o olhar do leitor demora no desenho enquanto ele, assim como o cachorro principal, absorve a informação. Quando nós retiramos algum quadro dessa seleção final, a história muda, fica sem sentido ou perde o ritmo de leitura desejado. O ritmo de leitura deve seguir a narrativa e demorar o necessário.

Esse ritmo varia conforme a mensagem que se quer passar. Para uma sensação mais contemplativa, por exemplo, ao invés dos personagens, eu poderia ter desenhado quadros apenas com a ambientação e mostrar os talheres, a toalha da mesa, o quadro da família na parede... cada um em um quadrinho diferente.

Essas “cenas” vão formar a narrativa e, com os momentos certos selecionados, a segunda escolha que precisamos fazer é a do enquadramento. Já conhecemos essa do cinema e temos noção de como o posicionamento da câmera influencia a visão geral da situação. Aqui, os primeiros quadrinhos nos colocam em uma posição superior ao cachorro inicial e isso gera um sentimento de inferioridade dele. Já quando passamos para a primeira pessoa (quadro 4), a posição de inferioridade passa a ser a nossa visão e os cachorros em volta se caracterizam como ameaçadores e no domínio da situação.

De acordo com McCLoud, nós estaríamos mostrando para o leitor qual é a posição dele dentro da história. Se está só observando:

O segundo quadrinho da história, com o cachorro sem conseguir reconhecer o sabor da comida.
ilustração de Mariana Lio

Se ele está jantando:

Quarto quadrinho da história em quadrinhos: a mesa posta com a cabeça de cachorro no centro.
ilustração de Mariana Lio

Ou se ele é a janta:

Último quadrinho, quando o cachorro percebe que está deitado na mesa de jantar.
ilustração de Mariana Lio

E os últimos quadros foram retratados com a primeira pessoa, a “câmera subjetiva” do cinema. Existem diversos recursos de enquadramento e posicionamento de objetos dentro do quadrinho para que eles fiquem mais pesados e maiores, mais fluidos, mais detalhados (close-ups), etc. Basta testar as opções e analisá-las em cada contexto.

A nossa terceira escolha está totalmente relacionada ao enquadramento. A escolha da imagem. O enquadramento não é nada se não houver o que enquadrar. E a mensagem não será passada corretamente se os elementos da imagem não forem bem pensados. Tudo na imagem deve significar algo. Existe o princípio de economia dentro da literatura, de expor apenas o necessário, e nos quadrinhos é a mesma coisa. O que está na imagem deve estar lá cumprindo uma função, seja de explicar o personagem, mostrar o temperamento da família, contar algum detalhe da narrativa… enfim, deve ter um porquê.

Agora, além dos desenhos, parte dos acontecimentos só é totalmente compreendida por conta das palavras, dos balões de fala. Essas precisam ser bem mais enxutas que as imagens, pois não estamos trabalhando com um texto em prosa, mas com a mistura de imagens e texto.

As palavras podem estar na fonte normal dentro dos balões de fala ou desenhadas como o “sua” usado para enquadrar o quadro 4. Um bom lembrete que McCLoud nos faz é de deixar tudo o que for traduzível em imagens como imagens. E esse “traduzível” deve levar em conta não só a mensagem, mas até o tamanho da HQ, as limitações de espaço da página e do quadrinho.

Por último, a escolha que nos falta pensar é o fluxo. Mas você deve ter notado que nós estamos falando de ritmo de narrativa e condução do olho do leitor desde os primeiros parágrafos. O fluxo basicamente é a união de todas as escolhas anteriores e pode ser comparado à cadência e à fluidez de uma leitura de prosa. Ele determina o tamanho dos quadrinhos, o cenário por trás da ação, a posição dos personagens e a direção para onde a ação parte, tudo para preservar a naturalidade da leitura das imagens.

Mudanças repentinas nos enquadramentos, por exemplo, podem atrapalhar a leitura. A localização dos personagens dentro do quadrinho e a direção do seu movimento servem como dicas invisíveis para nossos olhos. O cachorro do quadro 2 está virado de frente para o próximo quadrinho. A cabeça do lobo no quadro 3 também, já que está virada para a próxima “linha” de leitura, ou seja, o “s” de “sua” no quadro 4.

A história em quadrinhos com setas que direcionam o olhar para um quadrinho de cada vez, da esquerda para a direita, de cima para baixo.
ilustração de Mariana Lio

A partir dessas cinco escolhas de McCLoud, nós podemos enxergar que não, um gibi não é uma série de desenhos aleatórios sequenciados, mas que dentro de uma página existem linhas guias invisíveis, palavras essenciais que complementam imagens, imagens que caracterizam e detalham a história, enquadramentos que nos colocam - ou não - dentro da narrativa e frames exatos que sintetizam todo um movimento.

As HQs são um storyboard enxuto? Ou um texto com o benefício da caracterização por imagens? Teorias do cinema e da literatura se adequam a essa arte e talvez seja por isso que a arte sequencial é um lugar separado, que possui os benefícios do uso do texto escrito, da interpretação e imaginação do leitor, ao mesmo tempo que tem o poder de caracterizar visualmente personagens e mundos, proporcionar sentimentos desencadeados por enquadramentos diferentes e trazer o leitor para dentro da narrativa (enquadramento da “câmera subjetiva”).

Com o levantamento de toda essa estrutura, já dá para ter uma ideia de quanto se pode enxergar em uma história em quadrinhos e o quanto nossa leitura perde ao apenas subestimá-las. Uma história em quadrinhos nunca será apenas um gibi, mas uma mistura complexa de escrita e imagens, ordenadas numa narrativa meticulosamente construída.



Texto publicado na edição 3 — meios e registros da revista Alcateia.

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