Claus A. Corbett
ilustração de Mariana Lio
A criança é imaginativa e valente, capaz de criar universos infinitos em sua mente. Sua toalha, uma capa. A espátula? Uma espada. Nada é maior do que o poder criativo de uma criança. O brincar é o domínio da infância.
Mas, se isso é verdade, o que resta ao adulto?
Existimos em um mundo em que ser adulto é sinônimo de responsabilidades, boletos para pagar, problemas para resolver. Parece que o movimento ‘resgate sua criança interior’ já se foi e, agora, devemos cuidar para que as crianças exteriores, que são o futuro do mundo, possam brincar enquanto trabalhamos. Nosso entretenimento também deve ser pesado, dark & gritty — apesar de a década de 2000 já ter ficado pra trás, ainda insistimos em filmes e seriados que prezam pela “adulticidade” de suas histórias, de sua fotografia, de seu imaginário.
Por que não nos permitimos, enquanto adultos, vivenciar a leveza da ludicidade plena? Segundo Ferreira et al., “talvez isso ocorra porque se considera a fase adulta de extrema importância à produtividade, e também por ser o brincar, visto por esta sociedade capitalista como uma perda de tempo.”¹
Cobranças de uma sociedade focada em produção e em produtividade, de uma sociedade que considera como válido o que é rígido, quadrado, matemático. Que considera natural o que é biológico (enquanto aceito pela ciência), que desconsidera o que é humano (pela nomenclatura da própria academia). Vivemos em um mundo em que a hierarquia de valores só prioriza aquilo que é mensurável numericamente e aquilo que traz lucro. Mas o intuito aqui não é chover no molhado.
O que quero dizer é: somos seres lúdicos. Crianças, adolescentes, adultos, idosos. Humanos.
Huizinga aponta que “o jogo situa-se fora da sensatez da vida prática, nada tem a ver com a necessidade ou a utilidade, com o dever ou com a verdade.”2 O autor também elucida em seu livro que a arte e o jogo têm muito em comum, que a arte também é do domínio da ludicidade. E podemos ver, enquanto artistas profissionais, como isso nos sufoca com suas cobranças e com a desvalorização de quem somos enquanto adultos. A arte é (de) humana(s), não é por si mensurável numericamente e o lucro que traz é discutível em diversos momentos e pontos, inclusive pelo fenômeno da mercantilização da arte e os círculos inacessíveis de apreciação e definição de “alta arte”, da “arte válida”, da “arte séria”.
Para ser um artista adulto, é preciso então deixar o lúdico da arte para trás? É possível viver a arte e viver de arte sem sermos famosos ao ponto de aceitarem nossa ‘excentricidade’ de localizar a arte na centralidade de nossa existência? E tudo isso em uma sociedade em que…
…a ludicidade é colocada para ocupar lugares periféricos da existência humana, de forma que a vivência do lúdico acaba sempre ficando em segundo plano, e o ideal da humanidade passa a ser a racionalidade, onde o homem é comparado a uma máquina viva, cuja função é produzir (trabalhar) e não viver […]³
A mecanização do ser humano nega parte de sua natureza — o elemento lúdico, imaginativo, criativo. Isso nos é necessário como o ar, a comida, a água. A atividade lúdica “está inteiramente ligada à produção de hormônios indispensáveis para a manutenção da saúde física e psicológica humana”.⁴ Por isso, mesmo que se quisesse uma sociedade em que somos peças perfeitas em um maquinário produtivo, ainda seria necessário admitir a importância do jogo, do brincar, do criar.
Me dói o cinismo seco de ter de afirmar a importância vital da criatividade em prol de seu efeito na produtividade, mas às vezes parece que a única forma de se argumentar algo neste mundo é dentro de suas regras, dentro das regras do jogo que conta pontos em cifrões e a vitória em acesso ao que toda uma sociedade construiu e inventou, mas não pode aproveitar.
Infelizmente, vivemos hoje a idealização de que o jogo é uma questão de ganhar-perder, uma questão de estar “acima” de alguém, de ser “melhor” do que alguém. Mas a arte não tem essa natureza, mesmo que queiramos aplicar a ela valores e pontos. Somos seres lúdicos, essa é parte intrínseca de todo ser vivo, de todo ser consciente. A ludicidade, apesar de ser massacrada e rejeitada em uma sociedade de hard sciences, ou provavelmente por esse exato motivo, pode também ser uma cura para os males que nos afligem.
Brincar e o jogar podem ser utilizados como recurso terapêutico, para a estimulação dos hormônios citados acima com o intuito de levar o indivíduo a ter uma qualidade de vida, melhorar seus laços sociais, diminuição do estresse, estimulação psicomotricidade, aumentar a qualidade do sono e do descanso e assim obtendo uma crescente produtividade, aumento da criatividade, dentre outros benefícios que podem e são utilizados como instrumentos de auxílio nos processos de enfrentamento em casos de transtorno de ansiedade e depressão.⁵
O lúdico pode nos salvar, pode salvar o mundo. E, apesar de toda a angústia que levou à produção deste texto, é prazeroso admitir que este aspecto fundamental da experiência humana vem ganhando mais espaços atualmente e, por isso, há motivos para termos esperanças. Jogos de tabuleiro estão passando por uma nova alta, com diversidade em alta e cada vez mais possibilidades sendo introduzidas ao mercado. Videogames ganham um status quase hollywoodiano em suas produções e já não são mais vistos como brinquedos infantis apenas — e suas produções indie já são tratadas por muitos como experiências profundas e ricas em significado e catarse. O próprio fato de poder citar a sétima arte como um exemplo de valor em nossa sociedade também é um testemunho a favor do lúdico, já que há na própria atividade de se assistir a um filme a necessidade de habitar um lugar especial, mágico, que nos permite suprimir a realidade que habitamos por um tempo determinado, aceitando a fantasia que nos é apresentada — e essa, segundo Huizinga,⁶ é uma característica fundamental do lúdico.
Maior testemunho em favor do lúdico é o fato de escolhermos entrar e habitar este universo paralelo por duas horas de nossas vidas, já que, segundo Caillois, a atividade lúdica é “livre e voluntária, fonte de alegria e de divertimento”.⁷
Para fugir, então, desse lugar dark & gritty que tanto critiquei, escolho encerrar este desabafo com uma nota de esperança. Estamos percebendo — mesmo nos domínios das ciências — a importância da nossa ludicidade. Há um movimento de restauração daquilo que perdemos quando abandonamos a criatividade, a imaginação, o sonhar — e a melhor maneira de contribuirmos para isso talvez seja apenas continuar a criar, a imaginar, a sonhar mesmo depois de adultos.
¹ Ferreira, Andréa Francos; Vasconcelos, Ana Karoliny da Cruz; Gomes, Cynthia Valéria Barbosa; Rocha, Marcilma Galvão da. O Lúdico nos Adultos: um estudo exploratório nos freqüentadores do CEPE — Natal/RN. HOLOS, Ano 20, outubro/2004, p. 3.
² Huizinga, Johan. Homo Ludens (Estudos) (p. 229). Editora Perspectiva S/A. Edição do Kindle.
³ Ferreira et al., op cit., p. 6.
⁴ Souza, Nubia Rodrigues de. Ludicidade do Adulto: como recursos lúdicos podem ser utilizados para o auxílio nos processos de enfrentamento em casos de transtorno de ansiedade e depressão. Psicologia.pt — o portal dos psicólogos. p. 9. Documento publicado em 11.03.2019. Disponível em: https://www.psicologia.pt/artigos/textos/A1293.pdf. Acesso em: 05 fev. 2021.
⁵ Ibidem, pp. 8-9.
⁶ Huizinga, op. cit.
⁷ Caillois, Roger. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Petrópolis: Editora Vozes, 2017. Edição do Kindle.
Texto publicado na edição 6 — ludicidade da revista Alcateia.
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