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Revista literária Alcateia

A quem viu o que havia na gaveta

Susana Agnes Santos

ilustração de Mariana Lio



Querido diário,

Não, assim não. Será? Alguém ainda usa essa expressão para iniciar novos trechos em um diário? Eu não sei. Afinal, não é como se diários fossem, de modo geral, produzidos com o objetivo de correr mundo, de acordo com o pressuposto da intimidade. Bom, este aqui eu até gostaria que corresse...

Está chovendo bastante hoje, o tempo refrescou. Gosto das chuvas de primavera porque são mais duradouras e suaves em relação às chuvas de verão. Quando chove no verão, e estou fora de casa, sinto um profundo medo de morrer recebendo um raio na cabeça. Aliás, fazia tempo que não chovia por aqui… Foi uma boa surpresa, acalmou alguma coisa dentro de mim.

João, te escrevo para receber notícias suas, de sua família, saber por onde vocês têm andado. Estou com muita saudade. Me mudo novamente no mês que vem, mas já vou inserir aqui no final o endereço novo, caso você demore para me responder. Você não tem ideia da minha felicidade com a mudança, não aguento mais esta casa e o medo de mais uma enchente. Na última sobrou só a mesa da sala, abençoado seja o vidro.

Nasci em 1996, em uma sexta-feira. Não sei se chovia, nunca perguntei isso aos meus pais. Minha mãe era faxineira e meu pai era pintor. Lembro que meu pai gostava muito de apreciar a chuva. Não só a ouvia, como a observava e, por vezes, decidia senti-la na pele. Essa é a maior lembrança que tenho dele, e me chama a atenção não ser fixa no espaço-tempo. É fluida, constante, permanente. Já minha mãe era muito agitada para atividades de contemplação, mas muito criativa e sonora. Eu sempre ficava preocupada quando a percebia quieta ou silenciosa. Ela também era artista e tinha orgulho em dizer, ao contrário de mim, que nunca tive plena confiança para me afirmar como tal. Meu comportamento os homenageia, tragicamente, involuntariamente, misturando ansiedade e melancolia.

Bandeirinhas triangulares estão penduradas por entre uma porta aberta. A perspectiva é de dentro do ambiente. Do lado de fora se vê um guarda-chuva de ponta cabeça com água acumulada em frente a um caminho de pedras que leva ao horizonte verde, com uma árvore à esquerda e a silhueta de uma cidade ao fundo.
ilustração de Mariana Lio

Ei, você. É, você que está me lendo nesta revista. Você acaba de ler fragmentos do meu diário, de uma carta minha não enviada e do que poderia ser o início da minha autobiografia. Você tem ou já teve um diário? Já escreveu cartas? Já pensou como começaria sua autobiografia? Você já leu diários, cartas pessoais ou a autobiografia de alguém? Esse alguém era uma figura pública ou anônima? Você me deixaria ler o seu diário? Suas cartas? Bom, pelo menos sua autobiografia eu poderia, não? Afinal, diferente de diários e cartas particulares, uma autobiografia costuma ser escrita para circular por aí.

Como você se sentiu enquanto conhecia um pedaço da minha intimidade? Você gostaria de saber mais sobre mim? Quem eu sou agora para você? Redatora? Autora? Escritora? Anônima? Você conseguiria dizer que me conhece ao menos um pouco? Você acredita no que digo? Consegue afirmar se o que digo é verdade? A verdade importa? Ou o que importa é a possibilidade da verdade? Quais são as possibilidades de ação no mundo a partir da possibilidade da verdade?

Eu não tenho respostas, eu sequer conheço este texto. Eu sequer te conheço. Mas escrevo para você. Eu sempre escrevi pra você, seja lá quem você for. Mas te acredito e te dedico, aproveitando as possibilidades do reconhecimento e da identificação, ou da diferença, que também faz parte do processo de reconhecimento e reafirmação no mundo.

E se eu dissesse que sou poeta, você acreditaria em mim?

My dear,

estarei hoje à tarde em sua sala-cozinha-de-estar

Vou como quem não quer nada, nem chá, bolacha ou água,

vou como quem só quer entrar.

Eu não quero te convencer de nada, apenas entrar no seu espaço e te convencer da existência das possibilidades. Porque é disso que também se alimenta a literatura, a arte, a cenografia autoral e a figuração do leitor. Da crença de que há algo um tanto fragmentário aqui, algo um tanto fragmentário aí e que este algo pode ser modificado.

E eu ainda não sei dimensionar as possibilidades individuais, íntimas, que este texto me deu ao escrevê-lo, porque não consigo parar de tentar descobrir - fragmentos - das possibilidades que ele te dará.


Com carinho,

Susana Agnes Santos



Texto publicado na edição 5 — dedicatória da revista Alcateia.

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