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  • Revista literária Alcateia

A inesperada virtude da crítica

Susana Agnes Santos

ilustração de Mariana Lio



A thing is a thing, not what is said of that thing. Esta frase está colada ao espelho do camarim do protagonista de Birdman ou a inesperada virtude da ignorância e aparece já no terceiro minuto de filme. A ideia de que determinada coisa deve ser compreendida apenas a partir de seu estado “puro” corresponde ao fator definidor de conflito na narrativa. Ou seja, as peripécias que compõem a trama são geradas antes por uma crença do personagem do que por ações ou acontecimentos concretos ao seu redor.

Riggan, o protagonista, é ator, diretor teatral e está encenando uma peça na Broadway depois de anos de carreira sendo conhecido por ter estrelado o papel de um super-herói no cinema (o birdman, afinal). Riggan sofre do dilema que envolve a suposta oposição entre a arte cinematográfica de massa, ou blockbusters, e a arte “verdadeira”, na qual estaria incluído o teatro, com suas encenações e textos dramáticos canonizados. O filme explora a disputa de Riggan pela identidade como artista merecedor de reconhecimento, assombrado pela figura de birdman, com a qual debate mentalmente. Um elemento fundamental nesta luta de Riggan pela aceitação em tal espaço consagrado é a crítica teatral especializada, que se manifesta sobretudo na imprensa.

Há de fato no filme uma personagem que exerce a atividade de crítica teatral, publicando suas análises no jornal Times. Construída como figura arrogante, agressiva e superficial, a crítica promete destruir a peça de Riggan. O filme escolhe colocar a dinâmica entre o artista e a recepção crítica como extremamente desarmônica.

É certo que, para discutir o tema da crítica, não se pode ignorar seu potencial como ferramenta de validação. Contudo, consagrar ou destruir uma obra de arte está longe de ser a única possibilidade de ação da crítica no campo artístico, seja ela especializada ou não. Aliás, não há crítica sem produção artística. Também não há arte sem recepção. É óbvio que qualquer pessoa ou grupo pode produzir uma obra de arte e guardá-la do mundo, mas, enquanto ela estiver guardada, não é possível ao mundo experienciá-la como arte. A obra guardada permanece como objeto à espera de significados e discursos sobre ela.

Em Birdman, a frase no espelho de Riggan funciona como um mantra. O personagem deseja profundamente que sua obra de arte seja apenas “aquilo que é”, seja lá o que for. Deseja que esta não seja atravessada por diversos discursos e interpretações, dando margem para, enfim, críticas. Riggan deseja, afinal, a existência de um único discurso sobre sua arte, ou seja: o seu próprio discurso. Simultaneamente, Riggan também sabe do peso e da necessidade de ganhar os holofotes da poderosa crítica do Times para receber o reconhecimento como grande ator. A entrega visceral de Riggan ao espetáculo na Broadway demonstra a fragilidade de sua crença e extrapola os limites de sua identidade de artista, confundida com o super-herói birdman.

O dilema de Riggan, apesar de comum a muitos artistas, é pautado na falaciosa separação entre “arte de massa” e “arte verdadeira”. De um lado, o “blockbuster” e, do outro, o “filme de arte”. De um lado, a “obra-prima universal” e, do outro, o “best seller”. Estas categorias baseiam-se na premissa de que a arte só é arte quando conhecida por poucos. Definem que a arte, enfim, deve ser exclusiva, impopular, inacessível, difícil, elitista. É dentro desta lógica que a personagem da crítica de Birdman está inserida e exerce influência. Contudo, ela não fala para o vazio ou mesmo é ignorada. O público a ouve e os artistas também. Riggan a ouve. Nós a ouvimos.

Ou seja, há uma relação de dependência (ou um emaranhado delas) entre a arte, o artista, seu público e sua crítica. Esta relação não presume essencialmente divergências ou contrastes, mas estes podem fazer parte do processo. Ainda podem, com frequência, contribuir para melhorias e inovações técnicas de uma ou mais obras de arte.

Na história do teatro brasileiro moderno, críticos teatrais analisaram e publicaram na imprensa textos acerca de diversos espetáculos, inclinados a pensar a modernização de processos cênicos e dramáticos. Nomes como Anatol Rosenfeld, Décio de Almeida Prado, Sábato Magaldi, entre outros, contribuíram para o registro de técnicas, ambições e discursos possíveis acerca das encenações. Estes discursos interferiram (e ainda interferem) no significado de obras, configurando uma possibilidade de troca que, no caso do teatro brasileiro, rendeu frutos.

Fora do campo artístico teatral, podemos falar de interações harmônicas entre Antonio Candido e romancistas modernistas, entre Heloísa Buarque de Holanda e poetas da década de 1970. Fora do cânone e do campo acadêmico, existem as contribuições entre blogs ou revistas e artistas independentes etc.

Receber críticas, de modo geral, não é um processo fácil. Seja de críticos profissionais ou não, o risco de ter a sensação de “falta de compreensão” do sentido de nossas obras é iminente, ainda mais quando a crítica se assemelha à personagem pedante de Birdman. Entretanto, não somos donos deste sentido e uma crítica não necessita ser elogiosa para promover mudanças positivas. Nos cabe nada menos do que a exposição, a reflexão e a insistência na continuidade de nosso trabalho, lutando contra visões preciosistas da arte e pelo acesso mais democrático a esta.



¹Birdman, 2014. Dir: Alejandro González Iñárritu.



Texto publicado na edição 4 — vida de artista da revista Alcateia.

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