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Revista literária Alcateia

Àqueles como eu

Mariana Lio



Há um tempo, um professor meu comentou na sala de aula que se nós quiséssemos saber como era a realidade da Grécia antiga, deveríamos ler não as tragédias, mas as comédias daquele tempo. Por trabalhar o humor na caricatura do cotidiano, o gênero consegue representar a sociedade, os pensamentos e as opiniões públicas da época com mais sinceridade.

Lembrar desse pequeno comentário me fez questionar sobre uma produção que não é canonicamente reconhecida, mas que permite a formação de novos gêneros de produção e carrega um peso da representação social do período que estamos vivendo. As comédias são parte do cânone? Sim. Mas formas de expressão e plataformas de comunicação razoavelmente recentes, como as redes sociais por exemplo, permitem que diversas pessoas explorem as formas de expressão e produzam conteúdo.

Uma das consequências dessa democratização é a diversidade de representações do cotidiano. O conteúdo criado a partir de pessoas leigas ou iniciantes em alguma atividade retrata uma realidade diferente daquela de profissionais consagrados e famosos. Particularmente, eu consumo muito vídeos de desenhistas que estão no início da carreira ou até de pessoas que desenham por hobby. Os depoimentos me parecem mais sinceros, porque se aproximam da minha realidade.

No plano de fundo, uma cama com um ursinho em cima e uma parede com prateleiras e posteres. Em primeiro plano, uma mesa de trabalho com computador, caderno, porta-lápis, tripé para câmera, luminária e um cavalete.
ilustração de Mariana Lio

O tom amador transmitido pela filmagem fixada no desenho, pelas brincadeiras e comparações com a vida real aproximam a experiência da pessoa que assiste com a da assistida. Essa aproximação revela hábitos e até materiais alternativos para desenho, no caso, e acaba desmistificando certos estereótipos da produção artística.

Essa desmistificação não ocorre apenas entre pessoas que produzem a mesma coisa, mas entre o desenhista assistido e o público geral, que não necessariamente desenha, mas que consome esse conteúdo de alguma forma.

Na edição 4 da Revista Alcateia,¹ nós comentamos sobre como a produção artística pode ser estereotipada e carregar diversos questionamentos que nós fazemos a nós mesmos durante a produção. Os vídeos amadores de artistas iniciantes ajudam a quebrar os estereótipos e, de certa forma, atuam para a comunicação entre pessoas diferentes, mas que participam do mesmo mundo e consomem o mesmo conteúdo.

Em um artigo sobre quadrinhos, cinema e jornalismo, Felipe Muanis, mestre em Comunicação Social pela PUC-Rio e profissional de ilustração e audiovisual, comenta que existem

...discursos anti-hegemônicos que, ao explorar os percursos, o cotidiano, adicionamos caminhos, novos olhares e novas perspectivas que permeiam e invadem, no caso o jornalismo, e que mudam o caráter do discurso. Nesse sentido algumas mídias são lugares propícios para que esses discursos apareçam. A internet e os quadrinhos, os fanzines e pequenos jornais experimentais são exemplos disso.²

As mídias alternativas possuem, então, a capacidade de abranger assuntos de diferentes formas e, por consequência, de aproximar o produtor do consumidor. Não são ilustradores consagrados falando com espectadores, são pessoas que gostam de vídeos de desenho produzindo para pessoas que gostam de vídeos de desenho, produtores de conteúdo falando com produtores de conteúdo. Leitores escrevendo para leitores.

A democratização permite que todos possam ser produtores de conteúdo e expressar sua opinião e vivência através da plataforma que mais tem afinidade. Porém, a democratização permite não só a diversidade boa, mas acaba propagando discursos de ódio, preconceito e desrespeito.

O anonimato permitido pela internet propicia que conteúdos discriminatórios sejam divulgados sem serem vinculados à pessoa que compartilhou. A grande quantidade de comunidades online reforça a união de pessoas com a mesma opinião, sendo ela qual for. A liberdade de expressão garantida pelas redes sociais é uma de suas características mais importantes, mas também a que mais questiona sua própria existência.

André Gustavo Corrêa de Andrade, Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, comenta que a disseminação dos discursos de ódio se refinou ao longo do tempo e ganhou novas formas, como os memes, a deep web e os haters. Porém, ressalta que

A liberdade de expressão e comunicação é fundamental e deve ser a tônica no uso da internet. Mas isso não dispensa a autorregulação por parte dos provedores de internet, que devem empreender esforços para impedir a utilização da web como plataforma para discursos de ódio e para a prática de crimes e violações de direitos.³

Por isso, como produtores e consumidores de conteúdo online, nós somos responsáveis por aquilo que publicamos e consumimos, pois não só podemos propagar opiniões preconceituosas como também incentivar iniciativas irresponsáveis por conta de uma visualização ou curtida.

Dessa forma, através de novos suportes de comunicação, como as redes sociais, criados especificamente para facilitar a expressão interpessoal, as posições de consumidor e produtor se misturam por conta da forma pela qual a informação é transmitida. O suposto amadorismo por trás das produções pessoais e caseiras abre um novo canal entre o produtor e o receptor, que os aproxima por romper com estereótipos de produção e prometerem uma conversa mais sincera sobre a realidade.


Nos vemos por aí,

Mariana Lio



¹ Revista Alcateia. Edição 4, out.2020. Disponível em: https://revistaalcateia.wixsite.com/alcateia/post/revistaalcateia-4 .

² MUANIS, Felipe. Imagem, cinema e quadrinhos: linguagens e discursos do cotidiano. In: Disponível em: https://www.academia.edu/4063146/Imagem_cinema_e_quadrinhos_linguagem_e_discursos_de_cotidiano.

³ ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. O discurso de ódio na internet. 3 nov.2009. Disponível em: https://www.editorajc.com.br/o-discurso-de-odio-na-internet/ .



Texto publicado na edição 5 — dedicatória da revista Alcateia.

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