Claus A. Corbett
ilustração de Mariana Lio
Toda narrativa, seja em que formato for, começa do mesmo lugar. Seja no papel, computador ou qualquer outra tela, em qualquer outro material, é sempre assim. Primeiro, não há nada. E então, há uma ideia. E essa ideia é o começo de tudo. Do livro de ficção científica, do poema épico, do rpg com quarenta horas de gameplay, da graphic novel, do roteiro, do filme, da peça...
E, nesse início, tudo que vai para o papel (vou chamar de papel para fins mais práticos, mas lê-se: qualquer plataforma de produção textual que esteja sendo utilizada) vem de quem está escrevendo. As ideias saem da cabeça e se transformam em coisas, acontecimentos, plot twists, cenas marcantes, personagens que praticamente têm vida própria.
Sim, para a criação de narrativas, ou às vezes durante seu desenvolvimento, nascem personagens. Eles tendem a surgir antes de aparecer no texto. Ficam em nossa cabeça durante dias e dias, às vezes se tornam desenhos, às vezes são uma reunião de imagens, fotos, colagens, citações, objetos. E, aos poucos, vamos conhecendo esses personagens. Descobrindo do que gostam, como se comportam, qual sua aparência, quais seus desejos.
E quando finalmente estamos familiarizados com a nossa própria criação, ela passa a fazer parte do texto. Mas aí é que está a questão: esses personagens que criamos são realmente criados por nós? Porque por vezes eles se apresentam para o autor como alguém que se conheceria na rua. O personagem já parece nascer pronto e cabe ao ‘criador’ descobri-lo, não defini-lo.
Esses personagens são mais do que produções de uma mente criativa, eles são quase autônomos e às vezes não obedecem às ordens de quem narra sua história. Quantas vezes você não quis escrever uma cena ou pensou em um rumo para o enredo e seu personagem não quis seguir os seus direcionamentos, te levando a perceber antes mesmo de digitar aquelas frases que já tinha em mente que seu personagem não faria isso?
E, na verdade, a história, a partir de certo ponto, não somos mais nós que criamos. Pouco a pouco, tenho a impressão de que as narrativas se desenvolvem sozinhas. O cenário já está feito, o contexto está definido, a problemática foi montada e os personagens fazem o que querem. Nosso trabalho, eventualmente, se torna apenas transpor isso para uma mídia acessível a outros.
A história, então, se torna algo vivo.
Em seu livro Anatomy of Story, o consultor de histórias de Hollywood, John Trudy, avalia narrativas clássicas de filmes e livros e traz alguns apontamentos para que uma história não encontre seu fim antes do tempo, pois, como o autor coloca, “uma grande história nunca acaba”.¹
Com isso, o autor quer dizer que a história continua a se contar e a viver nas mentes de quem a apreciou mesmo depois de acabar. No entanto, há certos erros da etapa de produção que podem levar a um “falso fim” e, segundo o autor, podemos dividir esses fins em três tipos: o prematuro, o arbitrário e o fechado.
Sobre o fim prematuro, Trudy aponta algumas causas, como um desenvolvimento prematuro do personagem ou um objetivo que é alcançado antes do tempo, mas a que mais nos interessa aqui é uma ação ou atitude inorgânica do personagem. Nesse caso, toda a mecânica por detrás da narrativa se torna evidente demais e “a audiência percebe que o personagem está agindo de certa forma porque você precisa que ele aja assim (mecânica) e não porque ele precisa agir assim (orgânica)”.²
Trudy traz técnicas e ideias sobre como criar uma história sem fim, como chama, mas eu gostaria de oferecer aqui uma sugestão para evitarmos essa primeira armadilha da criação de narrativas: criar para seus personagens ao invés de forçá-los a criar para você. Dedicar uma narrativa àqueles que fazem parte dela é uma das maneiras de se garantir que suas ações serão orgânicas, que a narrativa em si acompanhará seu desenvolvimento e que não haverá um fim prematuro em sua obra. Isso é, de certa forma, assumir uma amizade com seus personagens, pois exige respeito, admiração, carinho. E isso não deve ser apenas em relação a seus protagonistas, afinal todo personagem, incluindo-se especialmente os antagonistas, são importantes na organicidade da trama.
E não acaba aí.
O fim arbitrário, segundo Trudy, é aquele “em que a história simplesmente para”.³ Segundo o autor, isso se dá por um plot inorgânico, que não está acompanhando o desenvolvimento de alguma entidade (personagem ou sociedade, por exemplo) e se nada está se desenvolvendo, não há um sentimento de que a história está se contando ou se concretizando. Não há movimento.
Já no falso fim fechado a história termina com um equilíbrio que parece resolver todas as questões que poderiam existir, gerando um novo sentimento de calma que perdurará para sempre. Segundo Trudy, isso leva a audiência a achar que “a história está completa e o sistema tem que parar”.⁴ Mas isso não é orgânico, pois nenhuma história, fictícia ou real, encontra em algum momento esse equilíbrio estático - todo equilíbrio em nossas vidas e nas vidas de mundos que criamos ou habitamos é dinâmico, exige pequenos ajustes com constância.
Aqui, trago mais uma pequena sugestão. Dedique suas narrativas não apenas aos personagens que a habitam, mas também ao mundo que habitam e, principalmente, à história que você quer contar. O texto dedicado a si mesmo é vivo, intenso, cheio de paixão e energia. Ele existe para si mesmo, em si mesmo. Ele é. Respeitar a narrativa que se cria é o mínimo esperado de um autor. Dar vida a uma história é também deixar que ela viva sem querer dominá-la, sufocá-la. Terminá-la.
Como uma grande história é sempre algo vivo, seu desfecho não é mais final e certo do que qualquer outra parte da história.⁵
Carinhosamente,
Claus. A. Corbett
¹ Trudy, John. The Anatomy of Story: 22 steps to becoming a master storytelling. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2007. p. 418.
² Ibidem, pp. 418-419. Grifos do autor.
³ Ibidem, p. 419.
⁴ Ibidem, p. 419.
⁵ Ibidem, p. 419.
Texto publicado na edição 5 — dedicatória da revista Alcateia.
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