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  • Revista literária Alcateia

Tempo do artista

Mariana Lio



Seremos esquecidos algum dia, assim como as pessoas à nossa volta. Mas para que alguém seja esquecido, essa pessoa precisou, de alguma forma, existir. Existir dentro de um grupo ou sozinho, dentro, literalmente, de um espaço, dentro de um período específico de tempo. Horas, meses, anos… não importa. O tempo destrói, mas também constrói pessoas.

As experiências que adquirimos ao longo da vida formam o que somos, nossas ideias, valores, conhecimentos. E certas conclusões acabam aparecendo como pop ups na nossa cabeça, como se fossem óbvias e fáceis de compreender. Porém, esses pop ups não brotam do nada, mas vão sendo processados durante um tempo até que, puf, a conclusão chega.

Há alguns meses, fiquei pensando em como o desenvolvimento pessoal do artista acontece e como eu estaria me saindo nessa compreensão pessoal. Fiz um levantamento dos últimos desenhos, tentei criar uma linha de raciocínio entre as cores, os traços, os temas. Entrei em pânico. Não conseguia concluir nada daquele monte de desenhos. Para mim, todos eram aleatórios.

Quando pesquisamos sobre “estilo próprio” dentro da comunidade artística, a opinião que se estabelece é: espere, continue produzindo, aprendendo e, quando você menos esperar, seu estilo se “revelará”. Por mais que eu lesse sobre isso, insistia ao máximo em tentar enxergar ou produzir algo mais padronizado. Não deu muito certo, eu estava insatisfeita comigo mesma. As ilustrações aconteciam, eu estudava anatomia, composição, cor, e nada dos meus desenhos ficarem padronizados da maneira como queria.

Eu estava exausta. Mas por que estaria? Eu passava por um momento de estagnação criativa, não produzia nada além do essencial. E é aqui que coloco o ponto deste artigo — ou melhor, desabafo. Eu estava exausta justamente por conta desse problema não resolvido.

Se o processo de efetuar pensamentos em segundo plano, inconscientemente, é verdadeiro ou não, não nos interessa aqui. O que quero ressaltar é que conclusões vêm com o tempo.

Um rosto em meio ao que parece ser uma mistura de nuvens e água, ondas.
ilustração de Mariana Lio

Tema, cor, composição, técnica, não se concretizam com um ou dois anos de experiência. Muitas vezes, nem o artista tem um entendimento maduro sobre si, então como a arte que ele produz pode ser concreta? Acredito que nossa maior capacidade é de experimentar e conhecer. Aprender, interpretar o mundo e traduzi-lo, transformá-lo. E essa compreensão sobre si vem com o tempo, vem com as experiências que ele nos permite adquirir. Vem com a nossa condição de existência.

O tempo destrói, mas constrói. O meu problema com o estilo próprio pode ser comparado a uma charada. Charadas tratam de assuntos corriqueiros de um ponto de vista totalmente diferente. “O que é, o que é, que cai de pé e corre deitado?” Cair de pé e correr deitado já é uma quebra total na nossa compreensão do que significaria cair e correr, porque geralmente quem corre, corre de pé e quem cai, cai deitado. Trocar a dinâmica de cair e correr cria um ponto de vista completamente diferente ao mesmo tempo que nos apresenta um problema a ser resolvido. Para resolver a charada, precisamos buscar diversas dicas tanto dentro da própria charada quanto no nosso conhecimento externo. E isso toma tempo.

A resposta, chuva, quando revelada, parece óbvia e é quase impossível não reagir com “ah, não acredito que era só isso!” O processo de resolver a charada dos problemas cotidianos e, no caso de artistas, de buscar o próprio estilo, percorre basicamente o mesmo caminho. Temos o problema e precisamos analisar tanto o que ele mesmo nos diz quanto o que temos de conhecimento de mundo, de experiências que acumulamos até aquele momento.

Eu entrei em pânico por não ter ideia do que eu produzia, e essa era a charada que precisava de solução. Eu tinha algumas dicas e precisava de tempo para entendê-las e tentar uma resposta. Porém, eu precisava de tempo não só para compreendê-las, mas também para acumulá-las. As peças poderiam ser um tema que eu gostei de desenhar quando estava na quinta série ou aquela pintura a óleo numa quarta-feira, aquele livro que aqueceu o meu coração há três meses, aquela pessoa que me disse oi na fila do banco no começo do ano passado.

O filme que vou assistir na semana que vem, o trabalho que vou pegar daqui dois anos, a crise existencial nos 30 anos, a briga que vou entrar quando tiver 45, uma conversa com pessoas que conhecerei há mais de 27 anos… As dicas são várias e nem sempre estamos no ponto onde coletamos todas.

O estilo pessoal vem daí. Ele é a acumulação e compreensão de técnicas, ideias e experiências. E com certeza não é um problema fácil de resolver, nem rápido. Hoje, tenho mais calma quando encaro meus desenhos, porque agora entendo que eles não são aleatórios, mas são conclusões que tive e vou continuar tendo ao longo do meu processo de autoconhecimento enquanto artista e pessoa. Cada esboço foi, é, será uma dica do que eu quero, do que eu gosto, do que penso e do que não quero, desgosto ou não penso.

Artistas precisam do tempo para entrar em contato com si, com o mundo, encontrar as dicas das charadas das suas obras e produzi-las. Então, dê tempo ao tempo.

Uma hora não estaremos mais aqui e seremos esquecidos, mas existimos. Existimos dentro de um período de tempo que nos permite caçar dicas e buscar respostas para diversos tipos de charadas. Se não hoje, talvez amanhã.

Ou ontem.



Texto publicado na edição 7 — tempo da revista Alcateia.

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