Mariana Lio
Monstros, fantasmas, doppelgängers...¹ entidades assustadoras que assombram heroínas, assustam aventureiros desavisados e dão shows com episódios de possessão desde que nos conhecemos por gente. As histórias de horror são as que, pessoalmente, mais gosto de ler e carregam um valor e uma possibilidade de discussão muito ricos.
Revitalizadas pela literatura gótica inglesa no século XVIII, as histórias assustadoras mantinham a força supersticiosa do ser humano em pleno iluminismo, época do pensamento racional, voltado para a observação da natureza. O Castelo de Otranto, de Horace Walpole, é considerado o marco do começo da literatura gótica e a obra que fixou a gramática gótica nas histórias.
Essa gramática é a ocorrência de eventos sobrenaturais e misteriosos; a ambientação escura, fora dos centros urbanos movimentados; os castelos escuros, mofados e antigos. Porém, o horror deu uma boa diversificada na sua aparência, entrando nos centros urbanos e na tecnologia (O Chamado), ganhou formas mais elaboradas, com personagens complexos (Pennywise) e críticas sociais (O exorcista e os questionamentos sobre os dogmas da Igreja). Esses enredos e críticas são permitidos muitas vezes por conta das entidades que comentei no início do texto.
Diferenciadas entre si por conta de características mais específicas de sua estrutura, essas entidades sempre mantém a mesma característica essencial: sua sobrenaturalidade. Ser sobrenatural é não se encaixar nas normas da natureza conhecidas pelo ser humano, é não ter forma clara o suficiente para ser denominada como pessoa, ser-vivo ou até alguma coisa palpável. Estão sempre entre duas ou mais denominações diferentes, como morto-vivo, pessoa-animal, temporal-atemporal.
H.P. Lovecraft, em O Horror Sobrenatural em Literatura,² afirma nosso medo natural pela incerteza que o desconhecido provoca e Freud, em O Inquietante,³ mostra que esse medo também pode ser um recalcamento, algo familiar que acabou se perdendo na história e ressurgiu nova e indesejadamente.
Por conta disso, as entidades possuem um grande papel com relação à representação das angústias e dos medos de determinada sociedade, causadas pela sua forma de organização e estilo de vida. Interpretar histórias de horror e estudá-las significa entender qual, num grupo específico, era o assunto que deveria ser escondido, o incômodo social que ninguém comentava sobre, mas que estava lá.
Essas visões sempre estiveram lá, mas foi com a sucessão de filmes após Ao Cair da Noite (It Comes at Night), de Trey Edward Shults, e Sombras da Vida (A Ghost Story), de David Lowery, que a discussão sobre a capacidade crítica do horror apareceu oficialmente para o público. O filme Corra, de Jordan Peele, que ganhou o Oscar de Melhor Roteiro Original, é um grande exemplo dessa capacidade.
Discussões sobre a qualificação do filme como sendo “pós-horror” e sobre a viabilidade dessa denominação à parte, a história da viagemde Chris até a casa dos pais de sua namorada a fim de conhecê-los se transforma em um thriller angustiante. Peele soube usar a capacidade do filme de horror de produzir desconforto e medo no espectador para não só expor, mas fazer com que quem assistisse ao filme sentisse de forma empática a agonia e o absurdo do racismo, que está presente no cotidiano e nas coisas normais do dia-a-dia.
O efeito produzido pelo diretor escancarou a possibilidade das tramas de horror e suspense de trabalharem com assuntos sérios e críticos e realmente produzirem o desconforto que determinados assuntos devem causar no espectador.
Histórias de horror sempre chamaram minha atenção e o gênero ainda pode agregar muito para nós, espectadores. O horror teve sua origem com castelos escuros e barulhos de correntes sendo arrastadas no chão, mas se desenvolveu e permite efeitos muito úteis para certas discussões.
¹ Doppelgänger ou duplo: duplicação da pessoa, de um personagem. Geralmente, representa o lado que ele quer esconder, quase como sua face sombria. Esse evento geralmente traz mau agouro e acaba com a vida da pessoa. O Homem da Areia (Der Sandmann), de E. T. A. Hoffmann, é um exemplo clássico de doppelgänger.
² LOVECRAFT, H.P. O horror sobrenatural em literatura. São Paulo: Iluminuras, 2007.
³ SIGMUND, Freud. O inquietante. Freud (1917-1920). “O homem dos lobos” e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Texto publicado na edição 2 — identidade da revista Alcateia.
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