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Claus Corbett

Representatividade explanatória

Claus A. Corbett

ilustração de Mariana Lio



TW: Homofobia, transfobia, queerfobia e sugestões de violência.

Na década de 1990, surge na comunidade científica a teoria de que haveria uma explicação genética para o comportamento homossexual, que, à época, englobava no imaginário cis-hetero-normativo todos os comportamentos que desviavam da norma socialmente aceita. A ideia mais defendida nesse ponto era a de que haveria uma variação na cadeia de DNA do gene que regula os receptores de hormônios andrógenos como a testosterona, que são responsáveis, entre outras coisas, pela manifestação de característica sexuais secundárias associadas à masculinidade.

Para o imaginário coletivo, isso era um grande avanço para a humanidade. Sabendo-se a causa, podia-se definir que tipo de ocorrência era (no caso, uma síndrome ou doença, já que partiria de um problema genético) e como lidar com ela (alguns artigos sugerem testes genéticos para permitir às famílias abortarem bebês que poderiam ser gays, por exemplo).

Tudo que desafia a frágil ordem dos estabelecidos é disputado e refutado. Nas palavras de Kuman,¹ a “busca pela causa da homossexualidade é na verdade a busca por uma explicação para o que deu errado e quem é responsável pelo desenvolvimento de orientações homossexuais”. Parte-se do pressuposto de que a realidade das maiorias sociais e políticas é a correta e, portanto, as demais só podem ser desvios.

Fora a nada surpreendente abordagem de causa única focada em explicações biológicas (afinal, para muitos só as hard sciences podem mostrar a realidade como ela é), também não surpreende em nada que o foco da teoria fosse a figura usualmente vista como neutra do cis-homem hétero de comportamento masculino. É a essa figura que se compara os ditos desvios de existência.

Apesar de a teoria genética ter sido estudada e desafiada ainda em 1993, em artigos como o de Macke e colaboradores,² as fake news da época já haviam sido espalhadas e essa explicação seguia sendo repetida. Outras teorias também foram criadas, assim como outras soluções para o “problema”: terapia de choque; campos de conversão; pray the gay away...

Mesmo na década de 1990, as imagens midiáticas da homossexualidade não conseguiam se livrar dos tons médicos e psiquiátricos. Uma razão para isso era que muitas das explicações para as causas da homossexualidade vindas dos círculos psiquiátricos e médicos tinham sido extremamente popularizadas, então elas continuavam a reverberar na esfera das percepções de senso comum mesmo depois de descartadas pela ciência.³

Mesmo as teorias específicas sofrendo mudanças ou sendo abandonadas, a busca pelos culpados e pela culpa continua. E esse discurso se torna ainda mais nocivo quando é acoplado à representatividade midiática, em especial quando teorias pouco científicas são usadas de embasamento para disseminar o preconceito.

Talvez você já tenha lido algum livro em que existem piratas que mantêm relações homossexuais por não haverem mulheres em seus navios, por exemplo, ou com mulheres que se reúnem em comunidades sáficas ou assumem identidades masculinas como forma de se protegerem de homens violentos. Talvez já tenha visto um seriado com uma personagem que é assexual por ter sido vítima de violência no passado.

Quatro linhas uma abaixo da outra formando uma bandeira listrada. As cores lembram a bandeira LGBTQIA+
ilustração de Mariana Lio

Os exemplos não têm fim e as identidades atacadas são sempre as minoritárias.

Esse tipo de representatividade explanatória é tóxica para aqueles que buscam se reconhecer na mídia ao reproduzirem pontos de vista culpatórios e justificativas para nossa existência. Ela reforça e reproduz o discurso primário de que é preciso explicar por que existimos e o discurso secundário de que essa explicação só pode existir na forma patologizante. Assim, reforça o discurso de que o estabelecido é o normal e o natural.

Além de ser uma força social em prol da desigualdade, é também uma agressão psicológica aos leitores. Ela levanta questionamentos e problematizações antagônicos à autoaceitação. Ela não contribui em nada para o bem-estar do espectador ao fazer isso, mas oferece ao autor a possibilidade de lutar por sua ideologia de opressão sem precisar oferecer evidências. A ficção pode ser usada para tentar entender e explorar a realidade, mas, quando isso é feito sem ética ou respeito, torna-se mais uma ferramenta de opressão e violência.

O papel social de criador e contador de histórias, sejam elas no formato que forem, exige assumir também responsabilidade ética por nossas produções. Isso inclui nos perguntarmos quem pode ser ferido pelo que fazemos e como podemos amenizar os danos de nossas obras — como a adição de avisos de gatilhos, por exemplo.

A tentativa de explicar uma razão, causa ou origem para determinada afetividade ou identidade de gênero, como já dito, assume o não-dito de que é preciso se explicar essa existência e precisar explicar uma identidade também é desafiar sua validade. Procurar apenas um fato ou circunstância que a explica, então, é ainda mais agressivo por querer mostrar, retomando Kuman,¹ exatamente o que “deu errado”. É preciso comportamento ético, honestidade intelectual e profundidade na consideração de tudo que não nos representa ou que nos representa apenas parcialmente — afinal, cada história é uma história. Você pode oferecer diversas informações biológicas, sociais, históricas, psicológicas e tantas outras sobre seu personagem para mostrar quem ele é, um ser complexo e multifacetado, com profundidade.

Mas tentar explicar fenômenos complexos como identidade de gênero, afetividade e sexualidade com uma relação de causalidade direta além de danoso para o leitor é prejudicial para a coesão, profundidade e capacidade da obra de manter a suspensão de descrença.

Todos perdem com histórias rasas e tóxicas que tentam apenas justificar os preconceitos de seu autor.

E, sim, nossos preconceitos transparecerão em nossas obras. Por isso, antes de pularmos no barco da representatividade, seja por motivos monetários ou por um desejo honesto de contribuirmos socialmente, precisamos nos informar.

Converse com pessoas dos grupos que quer representar, tenha empatia e ouça o que elas têm a dizer sem tentar reexplicá-las em suas próprias palavras. Investigue seus preconceitos e o que você acha que sabe sobre elas e se permita aceitar seus erros. Tenha respeito e carinho pelas personagens minoritárias em suas histórias.

Por fim, faça o que fizer, jamais tente achar uma justificativa para elas serem quem são.



¹ KUHAR, Roman. Media Representations of Homosexuality: an analysis of the print media in Slovenia, 1970-2000. Ljubljana: Peace Institute, 2003. Disponível em: http://pdc.ceu.hu/ archive/00001509/01/Media_representation_of_homosexuality.pdf. Acesso em: 14 mai 2020. p. 58, grifos do autor.

² MACKE, J. P.; HU, N.; HU, S.; BAILEY, M.; KING, V, L.; BROWN, T. et al. Sequence variation in the androgen receptor gene is not a common determinant of male sexual orientation. Am J Hum Genet, v. 53, n. 4, p. 844-852, 1993. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/ PMC1682384/. Acesso em: 14 mai 2020.

³KUHAR,op.cit.,p.59.Traduçãonossa.



Texto publicado na edição 2 — identidade da revista Alcateia.

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