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Revista literária Alcateia

Ok, virou um artigo

Susana Agnes Santos

ilustração de Mariana Lio



Era uma vez, no futuro. Uma revista literária e artística publicou uma edição sobre o tema “tempo”. A equipe teve um tempo para receber originais, produzir seus artigos, planejar agendas e eventos. Cada tarefa da publicação estava estimada, programada, inclusive um certo artigo, que, ironicamente, nasceu, cresceu e foi finalizado fora do tempo estipulado. Para os leitores do futuro, não foi possível saber que quem escreveu o artigo esteve atrasada pois, afinal, estão no futuro. Ou foi possível… por meio desta confissão. Mas no presente a autora está atrasada, neste exato momento, que para os leitores é passado, ela está atrasadíssima.

Perceber a passagem do tempo significa perceber a iminência de um fim, um limite, um prazo. A eternidade só é atribuída a deuses e figuras míticas e essa diferença é uma das bases da notoriedade que lhes é dada. No passado, o tempo também foi um deus, no futuro ainda é: Saturno, Cronos, por exemplo. Para os que não são deuses, como a atrasada do artigo, o fim é, o fim está. A autora só não sabe onde.

Quanto tempo alguém demora para superar um amor não correspondido? Um dia? Um mês, um ano, uma década? É impossível saber, porque o fim de uma dor nunca está no horizonte. Só é possível especular e esperar por ele. Curiosamente, o pilar da agonia da dor do amor é exatamente o medo de que ela dure pelo resto da vida de quem a sofre, porque a opção de viver a partir da dor absoluta sequer costuma ser uma opção de vida.

Perceber a passagem do tempo, o fim, o limite, a morte, constantemente traz à tona o desejo de controle – e a noção da falta dele. Seja para prolongar a vida ou encurtar uma dor, agir diante do tempo se faz necessário. No futuro há antibióticos, vacinas, calendários, relógios, eletricidade, imprensa etc., ferramentas que mudaram a relação com o tempo. No futuro também há outras ferramentas, ideias, dinâmicas, perspectivas, que também se relacionam com o tempo e já são conhecidas pelos leitores da revista. Mas não pela autora do artigo, não ainda. Algumas dessas novidades ela poderia até enxergar como absurdas.

Um minuto! Esperemos um pouco. Na medida em que se projetou para frente e para trás no tempo, uma pequena confusão acontece na cabeça da autora. Ela encerrou o artigo.



Há um mês e meio atrás:

“Pai, é verdade que depois dos trinta anos o tempo passa mais rápido?”

“É verdade. Mas ele parece mais bem gasto também.”

Há duas semanas atrás, em conversa com psicólogo:

Pintura abstrata que lembra cometas e fluxos energia em diferentes direções.
ilustração de Mariana Lio

“Bom, acho que a saída é esperar o tempo, sei lá, ver no que dá.”

“Mas o que é que esperar o tempo te trouxe até agora? Parece que ele não te ajudou nos últimos meses.”

Olá, voltei para tentar finalizar este artigo. Renego minha voz terceirizada, minhas projeções no tempo, minha distância temporal de mim. Em frente à página, me vejo rondando esses diálogos como se eu fosse um animal predador, esperando o momento certo de devorá-los, na expectativa de ser finalmente saciada sobre o tema do tempo. Se o tempo parece voar depois dos trinta anos e também parece não ter recentemente correspondido às minhas expectativas, mal gastos…

Estou impaciente, prestes a pular sobre meus diálogos. Seria isso me deparar com o desejo de controle? Porque o fim é, o fim está. E eu nunca fui de fazer uma Oração ao tempo ouvindo Caetano Veloso, em busca de acordo. Então gostaria de deixar os diálogos ainda para depois, me projetar para o futuro ou para o passado mais uma vez.

Devanear sobre o quão absurdo é organizar a vida em horas e datas, o quão absurdo é acreditar na eternidade, o quão absurdo é acreditar no fim, o quão absurdo é se deleitar com uma história em que a protagonista corre atrás de um coelho que grita que está atrasado, ou o quão absurdo é começar um artigo contando uma história a partir do futuro.

Queria me apaixonar somente pelo passado ou pelo futuro, à primeira vista pelo que sequer vi, inclusive novas perspectivas sobre o tempo. Porque esses diálogos me perturbam e o tempo presente me demanda controle, aqui, agora. Prazos, horários, calendários, pulos.



É possível o tempo parar? Sim, especialmente quando se tenta preencher uma página e nada acontece.

“Perceber o tempo presente é perceber a possibilidade, a visão deslumbrante, hipnotizante da possibilidade de você pular sobre a presa.”

“Porque a possibilidade ainda não é o seu fim, seja pela saciedade ou perda da presa.”

“Mas uma hora o fim chega e o artigo acaba, o seu prazo já estourou.”

Um pulo.



Era uma vez, no futuro, uma revista e um pulo. Se a presa foi perdida ou houve saciedade, só os que leram poderão saber.



Texto publicado na edição 7 — tempo da revista Alcateia.

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