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  • Claus Corbett

O poder da imperfeição

Claus A. Corbett

ilustração de Mariana Lio



Nenhum texto foi ou será terminado. Enquanto ainda trabalharmos nele, um texto sempre pedirá alterações complementações. O entregaremos finalmente aos seus leitores quando acharmos que está bom o suficiente, mas ele seguirá incompleto. Por que, então, escrevemos?

Todo texto é um trabalho sem fim, toda obra carrega em si a possibilidade do infinito. Mesmo que toda a história seja contada, ainda há mais o que contar, mais detalhes, mais curiosidades, mais sutilezas. Mesmo que toda tese seja explorada e defendida, ainda há outras ideias com as quais seria possível explorá-la.

Um lobo visto de cima. No canto esquerdo superior está sua cauda e no canto direito inferior sua cabeça; o corpo do lobo forma uma curva.
ilustração de Mariana Lio

Qualquer texto, ao ser lido, é complementado por seu leitor, comparado e misturado com outros textos, com outras ideias e com outras possibilidades em uma tentativa de interpretação que pode levar a resultados completamente inesperados, independente de todo esforço do autor em torná-lo coeso e coerente e de todo o desejo do autor em expressar ali a sua verdade.

Somos seres incompletos, imperfeitos e impermanentes e assim serão também nossos textos.

Em nossa sociedade ocidental, essas características são vistas como algo a se evitar, como um problema. No entanto, dentro da visão do zen-budismo, são apenas realidades que precisamos aceitar. Em verdade, elas inspiram a estética conhecida como wabi sabi, que se reflete em diversas manifestações artístico-filosóficas japonesas, dos arranjos florais da ikebana à cerimônia do chá.

Aceitar essas simples verdades torna todo o processo de escrita — o processo de criação artística em geral, aliás — mais simples, mais honesto, mais fluido. A imperfeição tem o poder de nos permitir mostrarmos mais da nossa verdade em nossos trabalhos. Afinal, somos imperfeitos por natureza.

A ideia de perfeição é a ausência de erros, de falhas, de problemas. É a ideia de que se formos bons autores, se nos dedicarmos, se pensarmos em tudo, pela eternidade nossas obras se manterão exemplos do mais alto padrão de excelência. Se tornarão um legado que provará a validade de nossa existência. Representarão tudo e serão interessantes para todos.

Queremos acreditar que a perfeição é possível. Que sermos perfeitos é uma possibilidade. Mas perfeição é um construto imaginário, não algo tangível ou atingível. Ela não existe fora do conceitual.

Compramos a ilusão dessa possibilidade por termos dificuldade em lidarmos com essas realidades do mundo e, com isso, não vemos a beleza que há na imperfeição, na temporalidade, na incompletude. Nada é tudo e isso é belo. Queremos criar algo “redondinho”, simétrico, de uma perfeição irreal. No wabi sabi, no entanto, a direção é prezar pela assimetria, pela simplicidade, pela modéstia e pela intimidade.

É preciso encarar o trabalho artístico, seja ele na forma de escritos, de imagens, de sons ou de movimento, como uma bela representação do imperfeito. A honestidade com a qual abraçamos a imperfeição em nós mesmos e em nossas obras permite uma profundidade maior e possibilidades infinitas.

Assim, nossa obra não representará um simulacro da beleza que imaginamos que o outro quer ver, mas sim a beleza que éramos quando a escrevemos, em toda a nossa imperfeição.

Posso escrever um texto que considero excelente em um dia e, ao relê-lo uma semana depois, sentir vergonha do que coloquei no papel — ou posso entender que ele é uma representação honesta do que eu tinha para dizer naquele dia. Quanto mais tentamos atingir a perfeição, mais nos afastamos dessa honestidade, mais bloqueamos o que temos para dizer em nossas obras.

Nada dura para sempre e algo que era “perfeito” para nós em determinado momento pode parecer errado no momento seguinte. O que eu disse ontem não precisa ser o que eu digo hoje. Eu posso alterar esse texto, “melhorá-lo”, abrir mão de coisas e colocar outras.

Posso jogar meu texto contra uma parede, deixar que se estilhace, juntar os cacos e criar algo novo e belo, como na prática japonesa kintsugi, a arte de preencher os espaços criados por esse estilhaçar com ouro, dando valor e honrando nossas imperfeições e o caminho que trilhamos até aqui.

Como somos seres com história, é seguro dizer que nada do que criamos hoje vem sem rachaduras. Já criamos obras estilhaçadas por nossas histórias, por nossas influências, por nossos passados. Somos seres estilhaçados por natureza, então não criaremos nada contínuo e perfeito ao sermos honestos em nossa arte.

E isso é lindo.

O convite que essas ideias nos trazem é simples: abrace sua imperfeição, preencha suas rachaduras com ouro e honre o que você carrega dentro de si; veja a beleza da assimetria de suas experiências e dizeres, pois não é só no ideal que o belo reside; crie algo simples, independente de sua magnitude, pois você nunca representará tudo que há para se representar em uma única obra; seja modesto e entenda seus limites, pois assim poderá honrar o que cria; e, finalmente, não tenha medo de expor seu íntimo em sua obra, pois o que há de mais belo na arte é justamente a possibilidade de desnudar a alma sem medo de verem suas falhas.



Texto publicado na edição 2 — identidade da revista Alcateia.

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