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Revista literária Alcateia

Mulheres do século 20

Julia Helena de Oliveira

ilustração de Mariana Lio



Por muito tempo na história da arte, a mulher era vista apenas como aquela que inspira, jamais a mão que a faz. Ela era a musa, a fonte da arte, mas jamais sua produtora. Isso não significa que as produções femininas eram inexistentes, mas resumiam-se a manifestações privadas e íntimas. Um hobby.

Se a produção de arte feminina era malvista, seu consumo também o era. Em particular, a literatura para o público feminino se concentrava em publicações de cunho moral, ressaltando a importância dos laços familiares e dos valores religiosos e éticos. Os romances que não entravam nessa classificação (que poderiam ser lidos por homens) eram vistos como desviadores de moral.

Intencionalmente atrasado pelo tradicionalismo burguês, o ponto de virada do século XX se deu, no Brasil, principalmente pelas revistas para o público feminino. Em um primeiro momento, possuindo publicações com temas de moda, dicas domésticas e pouca ou inexistente arte plástica ou literatura. A intenção era aperfeiçoar o ensino da mulher, pois essa seria a verdadeira porta de entrada para um futuro moderno e ideal: sendo o coração do lar e a responsável pela criação, a educação das mulheres e as melhoras nos lares brasileiros andavam juntos. Entretanto, essas publicações evoluíram para discursos mais complexos e revolucionários, sedentos por liberdade. As revistas femininas deixaram de conversar apenas com a mãe, a dona de casa, ambicionando atingir e provocar interesse em profissionalização.

Em teoria, espera-se do Iluminismo uma progressão igual dos conhecimentos e das artes, uma evolução para modernidade. Entretanto, os valores “liberais” que nasceram com a ascensão da burguesia tiveram um papel muito contraditório quando o assunto era a mulher na sociedade e nas artes. Assim dizendo, ao disseminar os avanços tecnológicos da Revolução Industrial e combiná-los com as luzes do conhecimento, o resultado não foi igualdade, mas a garantia da genialidade exclusiva da figura masculina.

Quando, de fato, a mulher deixou de ser a musa para se tornar a artista? Quando um hobby íntimo transformou-se em profissão?

Claro, houveram exceções. Mulheres de famílias com renome nas artes, pertencentes à elite culta brasileira, possuíam um caminho com maiores possibilidades do que outras. Com segurança financeira garantida sem a necessidade de um acordo matrimonial, elas foram as primeiras vozes da arte feminina a encontrarem o público. O século XX é o século de virada, o momento em que as artistas mostraram-se, finalmente, como artistas.

Julia Lopes de Almeida, Hilda Hilst, Lygia Fagundes Telles, Cecília Meireles, Cora Coralina, Carolina Maria de Jesus, Clarice Lispector, Conceição Evaristo, Lélia Gonzalez e Adélia Prado, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Lygia Clark… Mulheres que marcaram permanentemente a identidade da arte brasileira. Quantos gênios femininos não perdemos em nome da moral criada pelos gênios masculinos?

Entre verdadeiros talentos, completamente perdidos para o anonimato do lar, podemos resgatar Amélia de Oliveira, uma jovem poetisa do Rio de Janeiro. Embora seu nome deva parecer completamente desconhecido, os dois homens que tiveram papel decisivo em sua carreira até hoje possuem prestígio: Olavo Bilac (noivo) e Alberto de Oliveira (irmão). Em uma carta de 1888, Bilac confirma a posição patriarcal dos gênios artistas: enquanto versos particulares, Amélia de Oliveira encontraria um campo fértil, seria apoiada pelo noivo, um homem moderno. Entretanto, assim que decidisse iniciar uma carreira, ela não era mais uma jovem adequada.

Não me agradou ver um soneto teu no Almanaque da Gazeta de Notícias deste ano. (...) Previ logo que andava naquilo o dedo do Bernardo ou do Alberto. Tu, criteriosa como és, não o farias por tua própria vontade. (...) Devo confessar que fui eu o primeiro a insistir contigo para que publicasse versos. (...) Fiz mal. Arrependo-me (...) Há uma frase de Ramalho Ortigão, que é uma das maiores verdade que tenho lido: — “O primeiro dever de uma mulher honesta é não ser conhecida” (...) Não quer isto dizer que não faças versos. Pelo contrário. Quero que os faça, muitos, para os teus irmãos, para as tuas amigas, e principalmente para mim — mas nunca para o público (...).¹

De potenciais frustrados e perdidos antes que pudesse minimamente começar, também há histórias de carreiras permanentemente sabotadas por homens. Tudo o que se lembra da carreira de Anita Malfatti pode ser facilmente resumido à polêmica com Monteiro Lobato. Esquece-se seus anos de formação em artes na Escola de Belas-Artes de Berlim e na Independence School of Art, onde aprendeu técnicas que desagradaram sua família quando voltou a São Paulo em 1914, tendo que guardar suas telas para não causar mais decepção. Sendo incentivada por amigos e jornalistas conhecidos, resolve expor suas pinturas em 1917, sem poder antecipar o colapso que isso causaria na história da arte brasileira, a primeira exposição de arte moderna no país. Antes da tempestade de Monteiro Lobato, suas obras causaram estranhamento, mas toda a exposição foi bem recebida e frequentada, tendo críticas compreensíveis que aludiam à novidade e à bizarrice de suas telas, sendo no geral positivas.

No plano de fundo, uma parede de tijolos escura. Nela há placas redondas com símbolos femininos censurados. Em primeiro plano, uma mão segurando uma arma de onde sai tinta, que pinga em um pote ao lado de um pincel.
ilustração de Mariana Lio

Bastou um artigo publicado por Lobato para traumatizar e transtornar carreira da pintora permanentemente. Quadros já comprados foram devolvidos; tachada agora como “paranóica e mistificadora”, Anita Malfatti perdeu por anos sua confiança.

Artistas de gerações diferentes têm pautas e lutas diferentes. A mulher do início do século procurava um equilíbrio entre sua educação e lar, pois vivia no cenário em que a esposa ideal deveria caminhar com ambos; a artista da primeira metade do século era vanguardista, ainda que atrelada ao papel materno e cercada por nomes masculinos “maiores”, ela começava a encontrar seu lugar como profissional. As feministas dos anos 60 poderiam facilmente assombrar as mães e avós feministas, pensando em si mesmas a partir de seu corpo e da liberdade sexual - é o início do feminismo contemporâneo, a arte era subjetiva, expressiva - e ainda assim muito diferentes das jovens dos anos 90, fortemente atreladas ao movimento punk.

Seria sublime acreditar que esses resquícios foram destruídos pelo novo século. Mas os padrões de artistas gênios (homens) estão entranhados profundamente na forma como aprendemos arte. Não me formei no ensino médio há tanto tempo e durante todo meu período escolar o sistema que minha escola seguia abrangia formas artísticas (desde aulas recreativas, dois tipos de aulas de literatura e uma aula de história da arte). Entretanto, em meus três anos como aluna, não foi me apresentada nenhuma mulher artista. Nem pintora, nem escritora. Houve uma nota, inserida pela própria professora durante as aulas sobre o modernismo brasileiro, em que ouvimos sobre a polêmica de Anita Malfatti, com ressalvas de que não era um conteúdo tão relevante, servia apenas a título de curiosidade. Poucos anos depois que me formei, os vestibulares redescobriram Júlia Lopes de Almeida, autora de grande sucesso no início do século XX, de quem nunca havia ouvido falar, e Carolina Maria de Jesus, que conheci no primeiro ano da faculdade.

A arte só abrangerá de fato todos os gêneros quando for assumido que sempre foi produzida pelos mesmos. Homens e mulheres negros não escrevem apenas do século passado, a literatura LGBTQIA+ não surgiu com a explosão da literatura young adult. A profissão nem sempre existiu, mas a arte estava lá o tempo todo, assim como as artistas.



¹ Bilac, Olavo. 1988. Carta reproduzida em: Elton, Elmo. O Noivado de Olavo Bilac. Rio de Janeiro: Organização Simões, 1954. pp. 50-51.



Texto publicado na edição 4 — vida de artista da revista Alcateia.

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