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  • Claus Corbett

Modernidade líquida e hábitos criativos

Claus A. Corbett

ilustração de Mariana Lio



Zygmunt Bauman (1925 - 2017), sociólogo polonês, analisou nossa sociedade e cunhou um conceito muito importante para a compreensão de nosso modo de vida atual: a modernidade líquida. As diferenças básicas entre a sociedade sólida que tínhamos antes da contemporaneidade e a sociedade líquida que temos hoje em dia são principalmente a previsibilidade dos acontecimentos, a concretude das instituições e a solidez dos hábitos.¹

E é nessa última que nos deteremos hoje.

Diversos artistas bem-sucedidos que compartilham ou compartilharam seus hábitos de criação usualmente falam de hábitos fixos, de horários claros. Ernest Hemingway escrevia do raiar do sol até o meio-dia, sempre. A rotina de Simone de Beauvoir consistia em escrever das dez da manhã até a uma da tarde, para então se encontrar com seus amigos e depois voltar ao trabalho às cinco da tarde.² Beethoven acordava ao nascer do sol, tomava seu café com precisamente sessenta grãos moídos por xícara e já começava a trabalhar; após o almoço, fazia uma caminhada e costumava passar suas noites no teatro ou com visitas - mas sempre ia dormir cedo.³

Mesmo autores ainda vivos se colocam uma rotina fixa de trabalho, como Haruki Murakami: quando está escrevendo um livro, levanta às quatro da manhã e trabalha por cinco ou seis horas. Gerhard Richter - artista visual alemão nascido em 1932, cujo quadro Abstraktes Bild vendeu por 46,3 milhões, o maior valor pago na história da sociedade europeia a um artista vivo - se diz um ‘escravo da rotina’ e sempre levanta às 6:15 da manhã e trabalha em horários fixos entre as refeições.⁴

E, sim, estamos falando, aqui, de trabalho no sentido usual da palavra, no sentido de profissão, de certa forma no sentido de obrigatoriedade.

Hábitos sólidos, como os dos artistas citados acima, faziam muito sentido em outro momento de nossa estrutura social. Empregos em horário comercial dentro de um escritório sanitizado e livre de personalidade. Eventos previsíveis dentro de uma semana com horas fixas, sem espaço para personalização da rotina. No entanto, isso não faz tanto sentido dentro de uma modernidade líquida, uma realidade marcada por imprevisibilidade, individualização, indeterminação; uma realidade marcada pelo acaso.

Mesmo empregos mais sólidos e funções mais concretas dentro da sociedade estão se adaptando a uma nova forma de ser e funcionar, então por que o trabalho criativo, que pede por natureza uma abstração do concreto, deveria ser diferente?

A mudança para a modernidade líquida pode ser colocada em torno da década de 1980 e diversos artistas consagrados e produtivos que temos hoje já eram adultos nessa época, por isso muitos dos autores que ainda funcionam com uma rotina fixa cresceram e se formaram ainda na solidez. Mas como ficam aqueles que se formaram socialmente depois disso?

No plano de fundo, uma parede de tijolos escura. Em primeiro plano, um painel luminoso estilo letreiro neon. Uma casa se equilibra em um guarda-chuva de ponta cabeça. A casa está rachada ao meio, de onde sai uma árvore. Espalhados pela fachada da casa e pela árvore, há um notebook, latas, cartas de baralho, aviões de papel, relógios, calendários, borboletas e uma placa "MOTEL" e "TEMPO". Na porção inferior da imagem, há uma flecha para a direita.
ilustração de Mariana Lio

Nós, “artistas líquidos”, temos a incumbência de encontrar um novo caminho, um novo formato, respeitando e aceitando o funcionamento dessa nova realidade.

Podemos, ainda, aprender - e muito - com artistas mais “sólidos”. Neil Gaiman, por exemplo, oferece conselhos e cursos com base em sua experiência e já com uma visão clara da importância da individualidade. Em uma entrevista ao Tim Ferriss Show,⁵ Gaiman fala da importância de encontrar uma rotina e segui-la. Não adotar uma rotina que alguém já usa, mas encontrar uma rotina que funcione para você. O autor também fala da importância de se dedicar o tempo de escrita à escrita apenas, mas não dita ou aconselha que futuros leitores sigam a sua rotina de escrita ou os seus horários.

Em verdade, hoje em dia é possível que um horário fixo, mesmo em dias alternados ou horários diferentes em dias diferentes, não seja o ideal. A vida se torna cada vez mais imprevisível e flexível. Na data de publicação desta edição, por exemplo, lidamos com o dilema do isolamento social (quando possível) e de uma quebra ainda maior na estrutura rígida de nossa atuação social por conta da pandemia que vivemos.

No entanto, como aconselha Stephen King, é possível ter uma meta de produtividade diária, que não precisa ser tão ambiciosa: o autor tenta escrever seis páginas por dia. O importante é saber que mesmo que você encontre uma rotina que funcione para você em uma semana, na próxima ela pode precisar de ajustes. Não tenha medo de criar sempre que for possível e não tenha medo de deixar de criar quando não puder - apenas aceite que sua produtividade será afetada por essas escolhas.

Um dos conselhos que posso dar aqui é: saiba seu objetivo com a arte.

Que tipo de artista você é ou pretende ser? Você precisa criar algo que não te interessa tanto por dinheiro? Sendo um trabalho com prazo, uma rotina mais intensa (com mais dias criando durante a semana ou uma meta maior por dia, por exemplo) pode ser mais produtiva. Quer se tornar um artista profissional e se sustentar com sua arte? Com certeza, você precisará criar com frequência e intensidade também. Mas talvez a arte seja apenas um hobby e você queira apenas se divertir com isso. Então que frequência e que intensidade funcionam bem para você?

Talvez você tenha identificado nesse último parágrafo duas palavras comuns à prática de exercícios físicos: frequência e intensidade. No final das contas, toda atividade consome algum recurso nosso e, por isso, precisamos pensar na quantidade que temos desses recursos e no tempo que eles levam para se regenerar. Imagine treinar em uma academia em que o instrutor te diga para continuar levantando peso mesmo após seus braços não conseguirem mais, sem descanso, ou mesmo para levantar uma carga muito acima da sua capacidade.

Para hábitos como os artísticos, o resultado do excesso é o mesmo: exaustão, pouca produtividade e talvez até mesmo alguma lesão - como desenvolver uma resistência à ideia da arte ou mesmo criar sentimentos negativos com relação às suas obras.

Então, em primeiro lugar, saiba que recursos sua arte exige de você. Para alguns, o processo criativo pode causar fadiga mental e física e, para outros, não. Para alguns, pode causar fome, sede, desejo de comer doces. Pode ser que você tenha dores quando passa muito tempo trabalhando, mesmo em condições ideais. Pode ser que sua criatividade funcione bem até certo ponto, depois comece a declinar.

Conheça o seu processo e as suas forças e necessidades. A partir disso, comece a planejar e testar rotinas. O que funciona para você? Trabalhar todo dia ou dia sim, dia não? Usar horários fixos que se adequam aos seus outros compromissos ou ter uma meta diária? Talvez seja criar uma lista de coisas a fazer e escolher para o seu momento de criação aquilo que te parecer mais simples ou adequado.

Se permita experimentar e inovar e não tenha medo de mudar seu modo de funcionamento caso fique claro que alguma coisa não está funcionando para você, mas não tente se mudar para se encaixar nas rotinas de artistas famosos ou em uma rotina que alguém te disse que você deve seguir. Aceite a imprevisibilidade e aceite que não há uma resposta certa para todos, há apenas aquilo que funcionará melhor para você (nesse momento).

Mais importante ainda, entenda que a rigidez de nossa realidade social e de nossas rotinas está ainda mais comprometida por conta de eventos atuais - e pode ser que isso se torne um catalisador que só aumentará a velocidade de adequação de nossas vidas a essa sociedade líquida. Então, aproveite para surfar essa onda de incertezas e ver o que mais é possível para você.

Em entrevista dada ao The Guardian, Bauman diz que “Qualquer movimento que fazemos para estabilizar nossa posição pode ter o efeito completamente oposto […]”,⁶ portanto não tenha medo de errar ou de tentar de novo. A ilusão da estabilidade não faz parte dos tempos líquidos.



¹ Bauman, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

² Oshin, Mayo. The Daily Routine of 20 Famous Writers (and How You Can Use Them to Succeed). Mission.org [online]. Disponível em: . Acesso em: 8 set. 2020.

³ Burkeman, Oliver. Rise and shine: the daily routines of history’s most creative minds. The Guardian, 5 out. 2013. Disponível em: https://www. theguardian.com/science/2013/oct/05/daily-rituals-creative-minds-mason- -currey. Acesso em: 8 set 2020.

⁴ Puchko, Kristy. The Incredible Work Habits of 12 Great Artists. Mental Floss, 3 abr 2015. Disponível em: https://www.mentalfloss.com/ article/62254/incredible-work-habits-12-great-artists. Acesso em: 8 set 2020.

⁵ Gaiman, Neil. Entrevista dada ao Tim Ferriss Show em 2019. Podcast Notes. Disponível em: . Acesso em: 8 set. 2020.

⁶ Bauman, Zygmunt. Entrevista dada ao The Guardian em 2011. The Guardian. Trecho disponível em: . Acesso em: 22 jan. 2020.



Texto publicado na edição 4 — vida de artista da revista Alcateia.

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