Claus A. Corbett
Preciso começar dizendo que agora desconfio que já sabia antes que os tão famosos cinco sentidos não passam de abstrações, determinismos dentro de uma aquarela de diversas matizes que se misturam a partir de regras nem tão arbitrárias do nosso existir. Penso em começar com um exemplo simples: a comida de avião sempre parece meio insossa, menos temperada. Isso se dá por conta de como nossa capacidade olfativa é afetada pela altitude – e pelo fato de o que consideramos comumente como nosso paladar é uma experiência multissensorial. Não sei, talvez eu queira falar sobre atenção, como ela é um fator importantíssimo na efetividade de qualquer experiência sensorial. Ou de como, na verdade, temos percepções tão amplas que cinco sentidos não são nem de longe suficientes para abarcar tudo que sentimos.
Não, para ser sincero, queria mesmo era falar de como, quando eu era criança, tinha gripes e viroses e o mundo parecia muito diferente para mim. Não porque tudo tinha gosto de água (na verdade, água tem um gosto muito diferente do nada) ou porque a febre deixava minha noção de calor e frio desregulada. Mas porque eu me lembro de sentir no rosto o peso do ar. E eu não estou falando de vento, de movimento, eu estou falando de uma dimensão física - sólida - do ar parado no meu quarto fechado. De ‘blocos’, acho que posso chamar, de ar, de nada, de vazio; todos eles disponíveis para meu tato reconhecer.
Aliás, não sei se apenas o meu tato ou se todos os sentidos que tantas vezes agrupamos nessa caixinha do que é o tato. A pressão, a temperatura, a dor, o prazer e tantas outras coisas. A tensão dos meus músculos quando passava um calafrio. Meu equilíbrio e minha noção de onde eu estava naquele espaço abafado e cheio de bolhas de ar sólido. Aqui, me divido novamente em memórias de experiências táteis. Na maciez que eu sentia no vento úmido quando colocava a mão para fora do carro num dia nublado, aquela maciez que me dizia que ia chover. Talvez o cheiro da água no ar também fosse um sinal, não sei. Não sei se o que meu nariz sentia era um cheiro ou apenas uma outra sensação qualquer de umidade que eu aprendi a chamar de ‘cheiro da água’.
Sensação, sentido, sentir... sentimentos. Seriam os sentimentos também uma forma de sentido? Não do corpo físico, mas um sentido emocional, mental, espiritual? Fiquei me indagando esses dias, enquanto pensava em como os ‘cinco sentidos’ se misturam em cores cada vez mais inovadoras e em como muitas vezes eles, ou outros sentidos físicos, são acionados, enganados, atravessados por questões tão mais sutis.
Como o ar parado que acariciava meu rosto e tomava minha temperatura quando criança.
Me lembro de momentos em que uma música específica, ouvida na rádio do supermercado, me causava dor física. Tensão. Era como se me empurrasse para baixo e eu sentia a sua pressão real e concreta em meus ombros e em minha cabeça, no ventre. Queria saber como interpretar essa sensação de relembrar, de re-sentir o ressentimento. Isso que eu sinto agora, enquanto escrevo, é realmente uma ativação de um sentido? Ou é a memória que, nesse fluir de emoções, transborda para o meu corpo?
E a ansiedade por um toque que nunca veio, mas que se manifestou no calor da proximidade entre corpos? Em uma carícia que nunca existiu, mas que o aceitar de uma diminuição da distância entre nós serviu de catalisador para que minha pele sentisse a dele? Devo realmente entender que essa experiência pode tão facilmente ser dissecada, filetada para que apenas possa dizer ‘o sentido do tato me disse que ele estava perto’?
Como ficaria, então, a memória de sentir a tensão no corpo do outro, que nem ao menos encosta no meu? É possível sentir com os sentidos de outrem?
Não só isso, mas como fica tudo mais que também senti e que se misturou com esse esquentar pela proximidade? Hoje em dia, não sei se é possível dizer que há alguma experiência que seja apenas um sentido se manifestando. Aliás, quero dizer que não acredito mais nisso. Talvez um dia eu tenha acreditado que não permitir a percepção do que mais eu sentia isolava um dos meus sentidos, o ampliava – como nas vezes em que ouvi tudo aquilo que falavam no quarto ao lado. Mas não sei se acredito em qualquer momento do ser que não seja, pela natureza da existência, sinestésico.
Sinto saudades de sentir o mundo de outras formas. Já me disseram no passado que essas coisas são da alçada dos estados de consciência alterada – e já me prescreveram drogas, meditação, euforia, amor. Mas... será que o meu sentir realmente precisaria de uma intervenção ‘externa’ para experimentar, borrar as linhas que dividem, esmaecer as barreiras que separam?
Tenho medo de pensar que talvez o sentir seja apenas um só, talvez porque tenho aqui uma pequena birra do número um, mas a própria ideia que me assusta também me parece pequena, reducionista, inepta. A necessidade de reduzir tudo a uma coisa só não cabe em mim, não é da minha índole. Eu vivo a diferença, o estranhar. O caos?
Aliás, talvez o próprio fato de tantas vezes ver o mundo de forma diferente, ou sentir que não há sentido no que está estabelecido, se conecte ao meu sentir desenfreadamente quimérico. Não em uma forma de causalidade, mas em uma correlação que não pretendo explicar. Está bom para mim apenas sentir.
E hipotetizar, claro. Não explicações, mas possibilidades fora desse âmbito enfadonho de autópsia das experiências. Hipotetizar apenas como forma de criar possíveis compreensões de todos os sentidos que experimento. Será que minha visão acaba quando os inputs visuais são recebidos no lobo occipital? Ou será que o que ouço e cheiro me ajudam a complementar o quadro todo? Se ver é importante para que eu possa me equilibrar, será que minha propriocepção está deficiente? Ou será que eu me permito não sentir o mundo quando fecho os olhos por motivos outros? E quando sinto as ranhuras da parede, minha mente já logo vê como a luz incidiria sobre as reentrâncias.
Me deparei agora / mais uma vez com um questionamento de outra natureza. Será que apenas o corpo sente?
Claro que lanço a pergunta já tendo uma resposta. Não a única, porque, como disse, tenho certo incômodo com o unitário. Mas ela me satisfaz, ainda assim. Ela me lembra desse debate infindável que parece haver sobre quem ou o que somos – corpo, mente, alma, farelo de estrelas. Penso que talvez sejamos tudo aquilo que sente ou a junção dos sentires, dos sentidos, dos sentimentos. Sentimentar talvez seja apenas a forma da alma sentir e elucubrar, a forma da mente. Talvez existam aí tantos outros sentidos que pertençam a cada uma delas, sentidos que se misturam entre si e com os sentidos que pertencem a outras dimensões do ser. Talvez sejamos o sentido – em todas as acepções da palavra.
Você não é duas pessoas e você não é uma pessoa. Você é uma experiência! Se certifique de ser uma boa experiência.¹
¹ Fala de Garnet em Juntos e Sozinhos, episódio 36 de Steven Universe.
Texto publicado na edição 8 — sinestesia da revista Alcateia.
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