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Revista literária Alcateia

Comecei uma nova leitura e então caí no sono

Julia Helena de Oliveira

ilustração de Mariana Lio



“Você conhece aquele lugar entre dormir e acordar, o lugar onde você ainda pode lembrar de sonhar?”

— J. M. Barrie, Peter Pan

Quando falamos da teoria do jogo, ainda é inevitável citar a teoria de Johan Huizinga em Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. Entretanto, Homo Ludens foi uma obra publicada em 1938. Huizinga não viu o rápido crescimento dos videogames, não testemunhou o jogo complexo da poesia concreta e jamais ouvir falar em sessões de RPG.

Huizinga considera que as características próprias do jogo como

…uma atividade que se processa dentro de certos limites temporais e espaciais, segundo uma determinada ordem e um dado número de regras livremente aceitas, e fora da esfera da necessidade ou da utilidade material. O ambiente em que ele se desenrola é de arrebatamento e entusiasmo, e torna-se sagrado ou festivo de acordo com a circunstância. A ação é acompanhada por um sentimento de exaltação e tensão, e seguida por um estado de alegria e de distensão.¹

Na teoria do autor, essas mesmas características que associamos ao jogo também podem ser consideradas como as características da criação poética e literária, “A verdade é que esta definição de jogo que agora demos também pode servir como definição da poesia”.

São todas as nossas criações literárias um jogo? Se adicionarmos a característica de “evasão da realidade” e ultrapassarmos as barreiras do nosso banal cotidiano ao jogo, podemos muito bem chamar algumas artes de jogo.

Proponho que joguemos um jogo de suposições e pensemos em cada vez que realizamos uma leitura por puro e sincero entretenimento; se a poesia já foi provada como um tipo de jogo, narrativas ficcionais e fantásticas também o serão?

Uma carta ilustrada por uma pessoa envolta em páginas de papel. Na porção inferior da carta, lê-se luta.
ilustração de Mariana Lio

Embora a visão de Huizinga esteja muito mais limitada nos dias de hoje, ele ainda está certo quando afirma que uma das finalidades do escritor é criar uma tensão e enfeitiçar seu leitor, mantendo-o em longos períodos catárticos de puro entretenimento. Se não é o autor que cria o jogo literário, é o próprio leitor que o fará: ele participa de todo o processo de tensão da narrativa, compreende e reage aos elementos literários.

Vendo por esse ângulo, narrativas são um jogo e, ainda por cima, do tipo interativo: elas te entretêm, te fazem franzir a testa quando um personagem franze a testa, sorrir quando um personagem sorri.

Voltando ao nosso jogo de suposições, tudo isso me levou a pensar e a tentar descobrir as formas como às vezes jogamos esse jogo: às vezes como adivinhação, tentamos prever o enredo, tentamos descobrir onde chegaremos; um jogo de imitação (dos personagens, de relacionar isso com nossas vidas, de criar outra narrativa, outro jogo, algo inspirado); um jogo simplesmente de entretenimento, de catarse.

Claro, o mestre desse jogo provavelmente é o autor, é quem guia cada passo, que às vezes consegue controlar cada uma dessas peças (com ênfase nos às vezes, conheço muitos personagens e narrativas que parecem simplesmente caminhar sozinhos).

No jogo literário é possível ignorar algumas regras colocadas na narrativa pelo mestre. Embora o resultado do jogo seja consequência das ações e jogadas do autor, o leitor pode interpretá-las como bem desejar, pode imaginar relações entre personagens que o autor não previu, pode se tornar o jogador mestre quando imagina o que pode ter acontecido após a finalização das jogadas do autor, o final do livro escrito. No meu jogo de suposições, o livro não termina na última página, o leitor continua o jogo até onde o interessar. É onde nascem as fanfics, onde o jogo cresce para tantos lados que o autor inicial perde totalmente a palavra como mestre, há vários mestres jogando agora.

Por fim, coloco em nosso tabuleiro literário o pensamento: leitores jogadores não são raros, é natural e fácil cairmos no jogo, tão natural quanto cair no sono, quase uma ação involuntária; começa devagar, ainda com um pouco de recusa, e então de repente, de uma vez, você está imerso. Por sua vez, o autor jogador é um sortudo, acredito que seja mais feliz aquele que não esqueceu como se joga, da mesma forma que é mais afortunado o leitor que ainda sabe como cair no sono. Talvez não tão profissional, mas certamente mais divertido.

Espero que vocês joguem com a literatura e caiam no sono lendo essa edição.



¹ HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o Jogo como Elemento na Cultura (1938). São Paulo: Perspectiva, 2008. p. 97.



Texto publicado na edição 6 — ludicidade da revista Alcateia.

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